Por Rafaela Rodrigues*
Como de costume desde 1947, o Brasil abriu hoje a 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, esse ano sob o tema “Construindo resiliência através da esperança – recuperar da COVID-19, reconstruir sustentabilidade, responder às necessidades do planeta, respeitar os direitos das pessoas e revitalizar as Nações Unidas”. O presidente Jair Bolsonaro proferiu o tradicional discurso de abertura logo após as falas iniciais do Secretário-Geral da ONU, António Guterres (Portugal), e de Abdullah Shahid (Maldivas), Presidente da Assembleia Geral deste ano.
Mais alinhado com o histórico do Itamaraty na forma e na retórica, o discurso de Bolsonaro explorou pontos tradicionais da diplomacia brasileira nas Nações Unidas, mas manteve a prerrogativa interna de dialogar com a sua base, através da abordagem de temas ligados à ideologia bolsonarista. O presidente brasileiro fez diversos acenos aos seus apoiadores e a potenciais parceiros e investidores externos no Brasil, adequando seu tom mais radical – e negativamente polêmico – a um discurso mais palatável em matérias de grande prestígio internacional, como meio-ambiente, desenvolvimento sustentável e pragmatismo econômico.
O fato é que após dois anos e meio de governo, Jair Bolsonaro tem pouca ou nenhuma credibilidade entre a maioria dos líderes mundiais. Sua retórica sustentável não se legitima frente aos discursos, por exemplo, de António Guterres e Joe Biden, nos quais ambos assumiram um tom único em defesa da cooperação internacional, do multilateralismo e da união em torno do enfrentamento da pandemia da Covid-19.
Se hoje o mundo volta suas atenções para as políticas de saúde pública, os dilemas ambientais e as catástrofes humanitárias, Bolsonaro se mantém na contramão dessa prerrogativa em diversos momentos de sua fala: ao se compadecer apenas de “afegãos cristãos” e não da totalidade dos que precisarem de refúgio no Brasil; ao se posicionar contra o passaporte sanitário e a favor do tratamento precoce da Covid-19, cientificamente rechaçado pela comunidade internacional; e ao falar de clima e da Amazônia como se o governo brasileiro estivesse em consonância com uma legislação ambiental respeitável. O presidente citou, ainda, dados ambientais e de produção agrícola que não condizem com a realidade do Brasil, extremamente controversos.
Ao discursar para sua base aliada, Jair Bolsonaro vestiu a diplomacia brasileira de fundações morais e ideológicas, equívocos ambientais e desvarios sanitários. Houve também acenos explícitos à iniciativa privada – como o leilão da tecnologia 5G “com parceiros que respeitem nossa soberania e prezem pela liberdade”, leia-se #chinanão; e à ala militar – ao abordar as operações de peacekeeping nas quais o Brasil já participou e ao problematizar a questão indígena dentro do território nacional. Num tom político, Bolsonaro enfatizou as manifestações de 7 de setembro, negou que haja casos de corrupção em seu governo, apesar das evidências, e destacou o auxílio emergencial durante a pandemia, ainda que o governo federal tenha sido primariamente contra à implementação do benefício e à extensão de suas parcelas à população brasileira mais vulnerável.
A despeito dos esforços e pinceladas de política externa na forma e na retórica, o discurso do presidente Jair Bolsonaro é seguido de tropeços e mentiras, com os devidos infortúnios para o país. Não há roupagem diplomática que alinhe esse discurso e o “novo Brasil” apresentado hoje às pautas universalistas, multilaterais, sustentáveis e cooperativas dessa 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas.
*Rafaela Rodrigues é Pesquisadora e Doutoranda de Política e Relações Internacionais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Coordenadora do Comitê de Saúde Global do Common Action Forum (CAF), de Madri
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