Por Elvino Bohn Gass*, publicado originalmente no Viomundo
Este setembro tornou-se um mês especial, com a celebração do centenário de dois brasileiros ilustres, referências mundiais na defesa dos direitos humanos e da democracia: dom Paulo Evaristo Arns, cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, e Paulo Freire, educador e patrono da Educação no Brasil.
A trajetória de ambos tem a marca indelével das lutas por um outro mundo possível, livre de toda forma de opressão.
Um no exílio, outro aqui, eles atuaram contra o arbítrio e a ignorância, condições seculares que as classes abastadas utilizam para aumentar suas riquezas enquanto se expande a miséria.
Dom Paulo (14/09/1921 – 14/12/2016), como arcebispo católico no estado mais poderoso do Brasil, é chamado de “Cardeal da Resistência”.
Fez do poder de sua representação instrumento para denunciar os crimes e resistir aos desmandos da ditadura militar.
Freire (19/09/1921 – 2/05/1997) foi perseguido e exilado pelos golpistas de 1964, virou referência mundial em alfabetização.
Seu centenário, no governo neofascista de Bolsonaro, não mereceu uma homenagem oficial sequer; mas o seu trabalho continua muito bem, obrigado.
Há um boom de venda de livros dele e sobre sua vida. Freire optou por estar com os “esfarrapados do mundo” e contribuiu, com seu método revolucionário, para alfabetizar milhões de pessoas em diversos países.
Em 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi torturado até a morte, os militares disseram que ele havia se suicidado, Dom Paulo foi quem primeiro desmentiu a versão oficial.
E poucos dias depois, naquele perigoso ano, comandou um culto ecumênico na Praça da Sé, em São Paulo. Reuniu oito mil pessoas, o maior ato de resistência desde 1968.
Naquele culto, Dom Paulo disse: “Não matarás. Quem matar, se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus!”
Dele, o padre Júlio Lancelotti conta uma história lapidar: em 30 de outubro de 1979, o cardeal foi até o Instituto Médico Legal de São Paulo. Sabia que lá estava o corpo do metalúrgico Santo Dias da Silva, preso porque fazia greve.
“Dom Paulo saiu de casa com todos os trajes episcopais e chegou dizendo: ‘Abram a porta. É o arcebispo de São Paulo’. Foi aonde estava o corpo e pôs o dedo na bala, indicando o ferimento feito por um policial”.
Foi Dom Paulo quem vendeu o palácio episcopal no centro de São Paulo, onde moravam os bispos, para comprar terrenos e fazer igrejas na periferia. E teve forte atuação na criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBS), sempre ao lado dos trabalhadores e das comunidades das periferias.
Paulo Freire, eleito pelo bolsonarismo como uma espécie de inimigo público número 1 do sistema, está mais vivo do que nunca. É reconhecido como um dos maiores educadores de todos os tempos e eclodem homenagens a ele, promovidas por diferentes instituições, aqui e mundo afora.
Nas palavras de Nita Freire, viúva do educador, “Paulo foi um homem absolutamente extraordinário, que viveu a sua vida em função de humanizar as pessoas, lutando contra a miséria e o analfabetismo, a favor dos vilipendiados pela elite brasileira.”
Num País em que as elites cultivam a ignorância e a truculência como método de dominação, Paulo Freire foi na contramão.
Com seu sistema revolucionário, provou que o analfabetismo – e a ignorância inerente a esse mal – pode ser erradicado. Em 1963, no município de Angicos (RN), alfabetizou 380 trabalhadores em 40 dias através do método criado por ele.
Neste momento em que o Brasil está à deriva, com um governo direitista e ultraliberal, que prefere os bancos às escolas e financia latifúndios em vez de habitação para o povo, é oportuno lembrar das palavras desses dois gigantes:
“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”. (Freire)
“No Brasil, é necessário lutar todos os dias pelos direitos de todos e pelo fim da exclusão social” (Dom Paulo).
Que os ensinamentos dos dois Paulos nos guiem para a construção de um Brasil mais justo, igualitário, tolerante, com respeito ao meio ambiente, à soberania nacional e aos direitos sociais e trabalhistas do povo.
Não tenho dúvida de que, se estivessem vivos hoje, estariam ao nosso lado dizendo: Impeachment já!
*Elvino Bohn Gass é deputado federal (PT-RS) e líder do partido na Câmara dos Deputados
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.