Por Edson Pistori*
A maior organização partidária do planeta celebrou seu centenário exaltando um feito extraordinário: ter transformado a China numa potência global.
Nas comemorações, as grandes cerimônias e as propagandas emulavam a dedicação e a disciplina do povo chinês e a força da liderança coletiva do partido.
Com 96 milhões de integrantes, cerca de 6,9% da população da China, o Partido Comunista Chinês tem uma estrutura de participação relativamente descentralizada, associada a mecanismos meritórios de ascensão na hierarquia partidária.
A filiação ao PCCh confere honorabilidade e a possibilidade de engajamento nos assuntos de Estado, em contrapartida há deveres disciplinares bem rígidos e a obrigação de contribuição financeira que varia entre 0,5% a 2% da renda.
O PC Chinês reivindica o método do centralismo democrático, de origem leninista, porém aspectos culturais da sociedade chinesa e as reformas promovidas durante a liderança de Deng Xiaoping fizeram do comunismo chinês uma experiência bem mais democrática do que se possa imaginar, inclusive com algumas vantagens em relação às ‘democracias capitalistas’.
Uma das virtudes a ser destacada é justamente o conceito de liderança coletiva, amplamente utilizado como prática de governança, materializada inclusive na mais alta direção do partido, por meio do Comitê Permanente do Politburo, composto por 7 integrantes, que deliberam os principais assuntos do país por consenso.
A liderança coletiva, implementada nas reformas de Xiaoping, foi uma solução para inibir a concentração de poder nas mãos de um indivíduo, sendo uma crítica ao autocratismo maoísta (Mao Tse Tung).
Estudiosos do modelo chinês, inclusive os estadunidenses, atribuem a coletivização da liderança do partido como um dos fatores que proporcionaram à China um planejamento de longo prazo com decisões mais efetivas.
Os resultados são visíveis a olhos nus: a China saiu de um país praticamente agrário na década de 70 para se tornar a maior indústria mundial, estando prestes a ser a principal potência tecnológica do planeta e a maior economia do mundo.
Os pressupostos da liderança coletiva encontram correspondência na ciência política ocidental, especialmente nos estudos sobre a democracia crítica.
Refutando a exaltação do indivíduo, que está na base do liberalismo, a democracia crítica coloca em xeque a divinização da liderança individual e, por sua vez, condena a idolatria política do ‘líder’.
Para o italiano Zagrebelsky, um dos teóricos da democracia crítica, a autoridade do líder ou mesmo a autoridade do povo não depende de suas supostas qualidades ‘sobre-humanas’, como a onipotência, a infalibilidade ou representatividade.
O fundamento da autoridade democrática está no fato de que todas as pessoas (os indivíduos) e mesmo o povo, em seu conjunto, são necessariamente limitados e falíveis.
Neste sentido, se todos somos falíveis, portadores de defeitos e sujeitos a erros, a melhor forma de se tomar decisões com repercussões coletivas é, justamente, conferindo autoridade a grupos de pessoas (coletivos) e não apenas a um ou outro indivíduo.
Isso porque, quando o poder de decisão é exercido conjuntamente, há uma tendência dos méritos e defeitos dos indivíduos se compensarem entre si, reduzindo o risco da ‘autocracia’, ou seja, o governo de uma parte (os melhores) sobre a outra (os piores).
No entanto, a adoção do modelo de liderança coletiva requer uma relação de igualdade e reciprocidade entre os indivíduos. E, para isso, é indispensável haver limitações aos interesses e desejos individuais de poder.
No Brasil, em especial nos partidos e organizações de esquerda, o senso de coletivo, enquanto prática de ação política, sucumbiu à lógica individualista e aos valores liberais da competição, do imediatismo e do personalismo autoritário.
Há inúmeros exemplos para demonstrar como o individualismo se instalou nas organizações de esquerda.
Um deles está na prevalência dos mandatos parlamentares sob as instâncias de direção partidária. Ou mesmo, a quase sacralização das decisões do ‘Lula’, que relegaram a direção do PT à condição de espectador dos movimentos do seu maior líder.
A reversão desse quadro é indispensável por uma questão de eficiência política.
Dada a magnitude dos grandes desafios nacionais, a exemplo da eliminação da pobreza ou a conquista da sustentabilidade ambiental, é indiscutível que tais objetivos só podem ser alcançados pelo engajamento persistente de milhares de pessoas.
Também é importante termos em mente que os processos decisórios coletivos não são imunes a erros, mas produzem mais estabilidade política nas organizações, e com isso a qualidade dos debates melhora.
Além disso, a liderança coletiva reduz os riscos de as idiossincrasias dos líderes comprometerem o alcance de objetivos de interesse geral e da coletividade.
Para isso, é preciso evitar dar poder a líderes narcisistas, que se sentem ungidos, ou mesmo aqueles que têm maus hábitos de liderar como se fossem chefes e superiores aos demais.
Precisamos despersonalizar a luta política, combater a prática politiqueira, reformar nossos partidos políticos, exorcizar o pessimismo pequeno burguês, dar à participação política um caráter de massas e às direções o exercício da liderança coletiva.
Que o êxito e a sabedoria chinesa nos sirvam de alerta e inspiração.
*Edson Pistori, é advogado e ativista político filiado ao PT. Twitter: @edsonpistori.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.