Por Amiel Vieira*
Há cinco anos esta revista Fórum publicou meu primeiro texto sobre intersexualidade. Ainda era um texto de uma pessoa em processo de decisão sobre seu futuro como pessoa e identidade. Aquele foi um texto meio catártico, depois de meses de pesquisa e de desconfianças que tomavam o meu ser e depois se cumpriram.
Eu sou, Intersexo foi um daqueles textos que reclamava por uma liberdade de ser, castrada por anos de uma prisão chamada endosexualidade. Essa palavra, que já é muito usada pela militância intersexo mundo afora e que sou o único a defini-la em português, significa um regime normativo muito mais amplo do que a própria heteronorma. Este é um regime em que, inclusive, a perfectibilidade do corpo está ligada a uma ideia de saúde interna e externa do próprio corpo que cumpra o que se espera do homem ou da mulher cisgênera.
Esta teoria que ainda está em constante produção, e sairá em artigo científico em breve, acredita que ser mulher ou homem corresponda a formações corporais resultantes de características e hormônios definidos como partes essenciais do corpo masculino ou feminino. Níveis corretos de produção de estrogênio ou testosterona, além de cromossomos que biogeneticamente façam o corpo corresponder aos genes XX ou XY.
Até a descoberta dos hormônios e dos cromossomos, conforme assevera Alice Dreger (1998), os corpos dissonantes da norma eram um desafio que os corpos intersexos e os questionamentos por eles gerados impuseram à medicina, sendo um dos contribuintes para o surgimento da mesma como ciência . Os corpos “anormais”, tema do curso de Foucalt (2001) no College de France, ainda carregam o caráter de monstruoso que legitima a cirurgia para adequação sexual e de “gênero” dos corpos intersexuais até hoje.
O nome e o lugar da diferença que me colocaram a medicina lá no meu nascimento não foram corretamente explicados aos meus pais. O que foi transmitido a eles era que eu era uma menina com cromossomos XX e um “genital incompletamente formado”, do mesmo modo que Sandrine (2008) notou em sua etnografia em distintos hospitais onde tratar a intersexualidade era uma prática cotidiana. Trinta e oito anos depois, com uma análise mais aprofundada para minha tese de doutorado, percebo com ajuda de especialista em endocrinologia que minha operação foi realizada pela ideia de que o futuro de uma funcionalidade do meu genital de 1 cm era questionada no sentido de cumprir o ato da reprodução e, segundo, por causa de minha uretra finalizar na base do pênis, o que colocava a dúvida/certeza de que meu futuro psicológico seria afetado pela impossibilidade de urinar em pé.
Como disse em texto no meu blog sobre a afirmação da endossexualidade de que menino veste azul e menina veste rosa, na realidade é a afirmação da história social planejada pela heterossexualidade desde o ultrassom que aventa a impossibilidade de ser e existir da criança intersexo. A intersexofobia cala a discussão da mutilação genital intersexo pela sociedade. E a mesma sociedade elimina a intersexualidade com o calar e o permitir da invisível transformação do bebê intersexo em ser endosexo. Apesar de ter passado cinco anos desde o último texto na Fórum, ainda me pergunto quando a sociedade vai olhar pra nós, intersexos, não permitindo a IGM (Intersexual Genital Mutilation) e a ignorância "planejada" da nossa existência.
Há um ano e seis meses, completados no ultimo dia 25 desse mês, passei por um atropelamento e fiquei entre a vida e a morte. Mesmo assim, apesar de ter nome e gênero retificados e colocados em minha identidade, a intersexofobia continuou a ser exercida e foi preciso a ajuda de amigos e família para que a equipe médica e enfermagem me chamassem pelo nome e gênero que escolhi. Há 5 anos faço a mesma pergunta e deixo para sua reflexão: até quando a norma continuará a ignorar a nossa existência e a medicina a nos nomear e tentar nos erradicar? Até quando ser eu será um problema?
Eu reafirmo: sim, eu sou Intersexo!
*Amiel Modesto Vieira, 38 anos, Sociólogo intersexo e transmasculino. Co-fundador da ABRAI, Fundador do Observatório Intersexo e coordenador de políticas intersexo do IBRAT