Por Danilo Nunes *
O povo brasileiro vive uma busca, aparentemente interminável, por uma identidade nacional. Assim vem acontecendo com o passar dos tempos e períodos históricos, sempre buscando afirmações e reafirmações. Palavras como resgate, ancestralidade e contemporaneidade são usadas constantemente para refletir a insatisfação e busca da população que vivencia de tempos em tempos grandes ciclos culturais, políticos, sociais e econômicos.
Nesta perspectiva, surgem agentes culturais como atores e atrizes, bailarinos e bailarina, cineastas, artistas de diversos segmentos que através de sua expressão e discurso, formatados a partir das relações e processos socioculturais estabelecidos no centro do povo brasileiro trazem à tona a reflexão de que temos uma identidade e precisamos defendê-la e valorizá-la.
É indiscutível que nossos hábitos, nossos costumes, nossa relação com a natureza, nosso acolhimento, nosso calor humano e nossos ritmos contagiantes são apreciados e lembrados em qualquer parte do mundo onde se aborde o tema Cultura. Nossa gastronomia é valorizada em todos os cantos do planeta, assim como nossos(as) atletas e nossas festas populares, como o carnaval.
Com seus ritmos, batidas, harmonias e melodias, nossa música é consumida em muitos países nos diversos continentes, rompendo fronteira territoriais e fazendo morada nos gostos e corações daqueles(as) que se encontram distantes fisicamente do Brasil com suas formas, jeitos e idiomas bem diferentes do que aqui se encontra. A música brasileira é capaz de despertar sentidos e acessar lugares desconhecidos, mesmo naqueles com maiores friezas emocionais e sentimentais.
E nossa música é uma obra de arte que faz ecoar a história de um povo, sua formação, sua diversidade cultural e sua autenticidade, cantada por diversos (as) cantores (as) e intérpretes que vão se tornando coautores(as) das canções por terem a capacidade de, através de sua voz e seu canto, deixarem explícita sua digital, gerando naqueles(as) que a escutam a sensação de autoria da obra.
É o caso de Elis Regina em suas diversas leituras, como na canção O Bêbado e o Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, na qual o público em diversos momentos acredita ser a música de autoria da cantora.
Nos tempos atuais podemos identificar o mesmo processo em algumas cantoras dotadas dessa capacidade, como é o caso de Mônica Salmaso, que além de ser dona de uma técnica vocal impecável e um timbre inconfundível, traz em seu canto não apenas uma característica própria, mas toda a história de um povo, apontando um caminho na incansável busca por uma identidade formada a partir das misturas culturais que abrange, desde as formas ancestrais de nossa terra à uma contemporaneidade construída a partir de nossa herança cultural.
Isso é perceptível em todas as canções que a cantora interpretou, mergulhando em seus contextos e, muitas vezes (re)significando sua simbologia, trazendo as obras para a atualidade criando a partir do domínio e capacidade de ler através das melodias entoadas, uma forma eficiente de comunicação com o público, gerando em todos(as) nós sensações como se tivéssemos vivido toda a criação, o ambiente e o cada palavras dita através de sua arte de cantar.
Em vários momentos de sua carreira, Mônica nos traz a possibilidade de sentirmos e entendermos essa questão, como por exemplo na canção Menina Amanhã de Manhã composta pelo Tropicalista Tom Zé em 1972 com um determinado significado e, (re)significada em outro tempo pelo canto e interpretação da cantora, como explicou o próprio autor da canção em show realizado no Sesc Pompéia em 18 de abril de 2010
“…Essa música Menina Amanhã de Manhã, agora, já que a música é bonitinha também não precisa ter nenhuma referência a ditadura quase, era só a beleza que Mônica Salmaso é capaz. Então, apesar de eu cantar como Mônica Salmaso, eu vou fazer a Mônica e Jarbas vai fazer a Salmaso, vocês vão subentender o que tem aí de cuidado pra ditadura não compreender que a gente tá falando dela…”
O cuidado com a Ditadura era a ginástica cultural que muitos artistas no Brasil tiveram que fazer no período em que o país vivenciou uma regime militar (1964 e 1985) para que não fossem pegos pela censura. Já a beleza de Mônica Salmaso é a referência que Tom Zé faz à bela interpretação que a cantora fez de sua canção. O que a gente não imaginava é que essa música voltaria a fazer tanto sentido, ou melhor, um sentido parecido com sua proposta inicial dita pelo autor em pleno ano de 2021.
Mônica em sua gravação, trouxe-nos um tom que nos remete ao cheiro da terra, a cultura popular e a singeleza e suavidade do despertar e da felicidade e leveza que nos faz sentir ao ouvir sua interpretação da canção que, apesar de “bonitinha” é carregada de uma asperidade e crítica social a um regime violento e opressor.
Nos dias de hoje, no pós-golpe parlamentar e nas diversas ameaças e tentativas de novos golpes de Estado, com o povo brasileiro sofrendo perdas de entes queridos por uma pandemia que se alastrou e fica cada vez mais incontrolável por conta de um governo genocida, assassino e irresponsável com características autoritárias e com diversas referências à página infeliz da nossa história, Menina Amanhã de Manhã se torna sinônimo de fé e esperança quando escutada na voz de Mônica Salmaso.
O Brasil nos deu Mônica Salmaso e Mônica nos deu o Brasil com seu canto. E, com a esperança de mudança, com a beleza da música (que durante a pandemia vem sendo capaz de anestesiar um pouco o sofrimentos de muitos brasileiros) e com fé em nosso povo e em nossa democracia é que poderemos acompanhar do dia 17 até 30 de julho, no canal do YouTube da cantora, sua apresentação. Ela será acompanhada por músicos e parceiros de estrada e composta de um repertório que fez parte de sua trajetória.
É dessa forma que vamos vivendo esse momento tão trágico e infeliz da nossa história como nação, entendendo que só a partir de uma consciência, de um despertar do povo brasileiro que já se mostrou forte e unido nas luta por uma sociedade mais justa e igual, é que conseguiremos seguir adiante e virar mais uma triste página. E o canto de Mônica Salmaso nos traz essa esperança, esse orgulho e a certeza de que podemos e somos capazes de reconstruir o Brasil a partir de um canto de liberdade.
Para saber mais, acompanhe a entrevista com Mônica Salmaso que vai ao ar no próximo domingo às 20h.
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*Danilo Nunes é músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latino-americana.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.