Por Paulo Pimenta *
Trinta e quatro anos depois de ser removido para a reserva, em consequência de um processo em que foi acusado de planejar atos de terrorismo contra unidades militares, ferindo a disciplina da instituição, o capitão Jair Bolsonaro teve sua hora de revanche: submeteu à sua vontade o Alto Comando do Exército.
Expõe, nesses dias, a imagem e o prestígio da força verde-oliva a uma humilhação pública ao impedir a punição do general da ativa Eduardo Pazuello. E tripudia sobre a opinião pública ao nomeá-lo para um cargo na Secretaria de Assuntos Estratégicos.
O general intendente, como é do conhecimento público, cometeu uma flagrante violação do RDE – Regulamento Disciplinar do Exército – ao participar de ato político em 23 de maio, no Rio de Janeiro, ao lado do presidente da República e seus motoqueiros retrô, inspirados nas mobilizações das hordas fascistas promovidas por Mussolini, o Duce, na Itália dos anos 20 do século passado.
Hordas fascistas – Não se sustenta qualquer tergiversação a respeito. Tipo: “Olha, o general Pazuello estava ali como civil...” Essa pérola inacreditável foi oferecida pelo ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, que não por acaso é um general, um dos mais próximos auxiliares do capitão-presidente. Usa-se até um malabarismo lógico para defender o comício no Rio com a participação do general ex-ministro da Saúde: “O presidente da República não pertence a nenhum partido, logo, a manifestação não teve caráter político...” É inacreditável a desfaçatez de quem acha que a Terra é plana.
O ex-ministro da Saúde mal saíra de um lamentável depoimento, encerrado no dia 20 maio, na CPI da Pandemia instaurada pelo Senado Federal. Segundo o relator, senador Renan Calheiros, foram identificadas na fala do general pelo menos 14 mentiras aos seus inquiridores. Não chega a ser uma página de glória na crônica do Exército Brasileiro, nem mesmo na folha corrida do general.
Mãos manchadas de sangue – Pazuello ainda não tivera tempo de lavar as mãos desde que se afastou do ministério, manchadas de modo indelével pelo saldo de centenas de milhares de brasileiros mortos, vitimados pela pandemia da Covid-19, por sua criminosa incompetência. Mas já estava faceiro, três dias depois, sob os holofotes no palanque ao lado do chefe.
Sob os olhos da sociedade brasileira e dos meios de comunicação, Pazuello prestou-se a protagonizar pela primeira vez em muitos anos a participação de um oficial-general num ato político, o que provocou reações indignadas nos setores democráticos e mesmo entre os companheiros de farda.
Ataque à disciplina – O general Santos Cruz, ex-ministro do governo Bolsonaro, veio a público de forma incisiva: “Houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do presidente da República e com seu projeto pessoal de poder.” (...)
E mais: “A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições” constata Santos Cruz, e conclui sem meias palavras: “A politização das Forças Aramadas para interesses pessoais precisa ser combatida. É um mal que precisa ser combatido pela raiz.” (...) “Não se pode aceitar a subversão da ordem, da hierarquia e da disciplina do Exército, instituição que construiu seu prestígio ao longo da história com trabalho e dedicação de muitos. Péssimo exemplo para todos. Péssimo para o Brasil.” (...)
Santos Cruz ainda disse: “À irresponsabilidade e à demagogia de dizer que esse é o “meu Exército”, eu só posso dizer que o “seu Exército”, NÃO É O EXÉRCITO BRASILEIRO, este é de todos os brasileiros. É da nação brasileira.”
Efeitos nefastos – As Forças Armadas começam a sentir os efeitos nefastos do seu envolvimento na aventura do projeto de poder de Jair Bolsonaro. Vai custar um elevado ônus, não apenas para sua imagem, mas para o seu papel como instituição do Estado brasileiro, o engajamento de oficiais da ativa em cargos de linha de frente do governo.
Os comandantes não poderão alegar surpresa, em seu benefício. Jair Bolsonaro é por demais conhecido nas Forças Armadas brasileiras. E o contingente alojado em cargos técnicos em diferentes ministérios já é por demais numeroso.
A crise, com desdobramentos imprevisíveis, fala por si. Dobrado, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, apresentou, no dia 3 de junho, uma nota por meio do Centro de Comunicação Social do Exército sobre o caso Pazuello. Ele informou que analisou e acolheu os argumentos apresentados por escrito e sustentados oralmente por Pazuello e que “não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar”. Em consequência, arquivou-se o procedimento administrativo que havia sido instaurado contra o general.
Grave também a decisão de decretar sigilo de 100 anos para acesso aos documentos do processo, sob a alegação de proteção a informação de caráter pessoal. O que está em jogo é a proteção do interesse público e coletivo e o general transgrediu regras, inclusive sanitárias, ao participar de ato sem máscaras de proteção contra a Covid-19. O agente público deve se guiar pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e a sociedade tem o direito de se informada sobre atos das autoridades, que não devem dispor dos interesses da Nação e da sociedade brasileira de forma sigilosa.
Riocentro – A nota guarda enorme semelhança com a atitude adotada pelo coronel Job Lorena de Santana, chefe do IPM encarregado de esclarecer o atentado do Riocentro. No seu esforço para explicar aos brasileiros o que ocorrera na noite de 30 de abril de 1981, Job utilizou-se de toda sorte de contorcionismos para fazer a sociedade engolir que militantes de esquerda puseram a bomba no colo do sargento morto... E, ancorado em suas conclusões, tratou de enviar para o arquivo o inquérito que apurou a morte do sargento Guilherme Pereira do Rosário e feriu gravemente o capitão Wilson Machado.
Ao enviar para o arquivo o procedimento disciplinar contra Pazuello, o comandante do Exército repetiu a lamentável conduta de Job Lorena e franqueou o passo às investidas do atual ocupante do Palácio do Planalto contra os marcos da Constituição de 1988 e contra as atribuições por ela definidas para as Forças Armadas.
Abriu caminho para converter instituições do Estado em partido armado do presidente, o que evidentemente resulta na possibilidade de fraturá-las em múltiplas correntes, com as consequências nefastas que poderão advir daí.
Se a isso somarmos a conhecida e reconhecida promiscuidade das relações do clã Bolsonaro com segmentos das forças auxiliares – Polícias Militares – e com as milícias em alguns estados do país, teremos a visão do que espera a democracia brasileira nos próximos anos.
É indispensável que o Parlamento e as demais instituições do Estado e da sociedade se pronunciem frente a esse fato de extrema gravidade que ameaça a democracia, ao converter as Forças Armadas em guarda pretoriana do presidente de turno.
*Paulo Pimenta é deputado federal (PT-RS).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.