Por Wederson Santos *
A história da deficiência no Brasil revela, de alguma forma, a própria história do Estado brasileiro ou, para ser mais preciso, a história das razões do Estado brasileiro – sua governamentalização, no conceito foucaultiano. Principalmente, como ele se republicanizou e se constituiu enquanto Estado liberal (e social) no seu compromisso com os direitos, em suma os sociais e econômicos pré e pós-Constituição de 1988. Isto porque a deficiência não é um a priori histórico ou ontológico formadora de identidade sobre a qual, a depender de situações, algumas pessoas sofrem tratamento discriminatório ou não, têm desigualdade de participação na sociedade ou não, como vemos em outros grupos vulnerabilizados e politicamente organizados. Todas as pessoas com deficiência sofrem tratamento desigual porque a deficiência é ela mesma a opressão, não um dado biológico expresso no corpo.
Deficiência é por natureza o não reconhecimento de que pessoas com singularidades corporais (sejam físicas, mentais, sensoriais, intelectuais) devam viver em igualdade de condições com as demais pessoas. Isso implica que a noção de deficiência só ganha densidade conceitual e política na medida em que pessoas que possuem alterações corporais significativas reivindicam tratamento igualitário e não discriminatório. Ou seja, a deficiência é em si uma construção social (ou denúncia) de opressão sobre corpos. Parece forte para quem pensa em defesas identitárias e afirmações políticas da diferença, mas é isso: só existe deficiência porque direitos são sistematicamente negados a essas pessoas. Só existe deficiência porque o Estado impede essas pessoas de desfrutarem da vivência com dignidade e do convívio social igualitário com os demais sujeitos. Essa compreensão pode parecer nova, mas está no debate científico há cinquenta anos e inclusive expressa na nossa Constituição Federal, por uma alteração em 2009. Não é meu delírio comunista.
Hoje, deficiência é um demarcador que leva à opressão, à desigualdade e a injustiças ligadas à restrição de participação na sociedade menos por causa de outra experiência social (de ordem histórica, cultural, econômica, religiosa...), e mais em função da própria ineficácia estatal em afiançar direitos a esse grupo. Diferente de outros segmentos que sofrem opressão, as pessoas com deficiência não precisam – ou precisam bem menos – de algum nível de inação estatal para terem direitos protegidos, por exemplo. Elas não precisam de garantias contra algum nível de interferência indevida do Estado em suas vidas, como se costuma dizer sobre os direitos negativos. Tais liberdades individuais são necessidades de quaisquer pessoas e grupos e não em função da deficiência. Por outro lado, tal necessidade de proteção é facilmente percebida nas reivindicações, por exemplo, do movimento LGBT, mulheres, negros, povos tradicionais, minorias étnicas e religiosas, dentre outras. Essencialmente o que as pessoas com deficiência precisam para tratamento igualitário é do Estado em ação, por meio de políticas sociais. Embora reconheça que essa distinção dicotômica entre direitos positivos e negativos é inclusive inadequada e rasteira, meu intuito é apenas demonstrar o quanto a própria concepção de deficiência guarda relação com o papel do Estado na execução de políticas públicas.
Defendo há algum tempo que compreender a questão da deficiência no Brasil é uma chave-analítica para compreender nossa própria história e, portanto, nosso futuro. Por isso, o movimento político das pessoas com deficiência no país precisa ser sempre radical, revolucionário e crítico porque o que se questiona é como a sociedade estruturalmente impõe barreiras às pessoas com deficiência, bem como as estratégias para alterar esse quadro. Isso não significa que representações do movimento social de pessoas com deficiência não possam participar da institucionalidade política, jurídica e das esferas do Executivo, no intuito de composição de interesses em dado momento histórico e circunstanciado para avançar nas conquistas. Mas é preciso ter consciência de que, ao participar, seu compromisso com as reivindicações das pessoas com deficiência ganha ainda mais relevo e urgência.
É por essas razões que a aproximação e o apoio de frações do movimento político de pessoas com deficiência ao governo Bolsonaro são gravíssimos e inaceitáveis, não apenas do ponto de vista estratégico, mas principalmente do ponto de vista ético. E não é porque sou oposição. E nem falo isso para todo o movimento social de pessoas com deficiência no país, mas falo para muita gente. Porque um governo explicitamente autoritário, tacitamente fascista e sabidamente neoliberal é, por princípio e por prática, inimigo da causa das pessoas com deficiência pelas razões enumeradas anteriormente. Não é à toa que a primeira-dama é próxima do tema para mascará-lo como objeto de caridade e voluntariado, para assim substituir a concepção de direito. Porque é o único modo de tê-lo operante neste tipo de governo que tem por base a necropolítica e a violação dos direitos humanos como tática. Desafio qualquer pessoa a demonstrar qual avanço em termos de garantia de direitos na área de deficiência foi elaborado e executado pelo governo Bolsonaro – não vale iniciativas do Legislativo, nem aquelas iniciadas em governos anteriores. Um tema que tem a primeira-dama como madrinha era para ser a principal pauta social deste governo. Mas não o é exatamente porque a força motriz do governo Bolsonaro é a violação de direitos. Causa a mim muito espanto lideranças políticas das pessoas com deficiência não terem entendido esse jogo.
O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) foi inativado pelo governo Bolsonaro mês passado e ficará assim até agosto. No momento mais crucial dos últimos quinze anos para o tema, quando se regulamenta o artigo 2º da Lei Brasileira de Inclusão que trata do conceito de deficiência e quem terá acesso a direitos. Vocês lerão justificativas jurídicas e institucionais para o fato, o que não significa que sejam do mundo da razoabilidade. A inativação do CONADE – espero que temporária – é uma evidência não do que o governo quer fazer com a participação social daqui para frente e que tenta desde o início do mandato, mas do que ele diuturnamente faz na temática da deficiência e dos direitos humanos. E isso é muito mais grave. Porque implica ainda mais os segmentos de pessoas com deficiência que ainda apoiam o governo e se desdobram em retóricas juvenis – e alguns nem isso – para justificar o crime moral e ético que têm cometido. Destinação orçamentária para entidades, cargos e promessas de privilégios na regulamentação de dispositivos legais não podem ser maiores do que lutar pelos direitos das pessoas com deficiência. Porque essa é uma luta histórica. Mas é também um compromisso ético de todos, pessoas com e sem deficiência. O passado ensina, a história contextualiza, mas é o futuro que cobrará.
*Wederson Santos é assistente social do INSS e doutor em Sociologia pela UnB.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.