Por Deivi Kuhn *
Relacionamentos sempre possuem seus problemas e desafios. A maioria nos proporciona inúmeros momentos de felicidade. Outros vão no sentido contrário, se tornando uma armadilha. Um relacionamento tóxico pode tanto reproduzir o sistema patriarcal que estamos lutando para superar, relações de exploração de um ser humano por outro ou ainda o individualismo capitalista em que desejos egoístas são impostos uns aos outros.
Muitas vezes a vítima não percebe o que está sofrendo, o que dificulta romper essa prisão psicológica. Não entender que o amor é recíproco, a esperança que o outro mude, ser manipulado pelo jogo do abusador entre outros motivos levam o abusado a insistir para que “dê certo”[1].
Você não está vivendo isso com o seu celular?
Toda hora vejo usuários enfeitiçados por essa relação desigual, admirando seu opressor. Olham apenas a criatividade, a capacidade de inovar, os aspectos positivos da tecnologia, sem se dar conta dos abusos que estão sofrendo.
Hoje apenas duas empresas comandam o mercado mundial de sistemas operacionais para celulares. Com todo esse poder, elas elaboram muitas formas de aumentar seus ganhos e controles. Ambas buscam o controle exclusivo sobre a instalação de aplicativos nos seus sistemas, impondo suas lojas muitas vezes obrigatórias, permitindo filtrar, escolher e boicotar tecnologias de acordo com seus interesses.
Um grande percentual de tudo que você pagou comprando um aplicativo, ou mesmo adquirindo itens dentro deles será capturado por elas. O que fizeram para merecer cerca de 30% do valor? Nenhum esforço relevante foi realizado, elas apenas exploraram as empresas e usuários que não podem sequer estabelecer relações diretas pelas regras que criaram.
Esse modelo injusto tem causado reações, como a da empresa Epic Games, que entrou com um processo denunciando as práticas monopolistas da Apple[2]. O Facebook está apoiando essa iniciativa, até por ter sido prejudicada com os novos controles de privacidade implantados no iPhone.
Temos aqui uma situação diferente para quem usa Android e IOS. O Android permite, alterando uma configuração, instalar uma loja de aplicativos alternativa. Em outras palavras, ainda é possível manter sua liberdade. O IOS, por sua vez, é totalmente bloqueado. Para ele você é apenas um ratinho de laboratório, caminhando dentro de dutos, e que terá apenas as opções que decidirem por você (fica aqui meu registro em favor da causa animal, chega de sofrimento).
Os usuários de iPhone estão completamente aprisionados. Em termos de barreiras tecnológicas, a Apple é historicamente uma das piores empresas de nossa história. A única maneira de romper essas correntes é realizar um procedimento conhecido como jailbreak, considerado por ela uma quebra de licença[3].
Em um mundo desigual como o nosso, relações abusivas na forma de dependências tecnológicas se assemelham à relacionamentos pessoais. Não posso deixar de comparar usuários de iPhone que conheci com algumas vítimas de relacionamentos abusivos. Sabem que é a pior escolha, mas se esforçam para criar justificativas para não mudar: “Mesmo sendo caro ele é muito bonito!”, “ Ele me dá poucas opções, mas esses botões são muito intuitivos”, “Olha como funciona bem”, “Só está lento porque é hora de trocar”[4] (…) Já vi em relacionamentos pensamentos similares: "Ele tem ciúmes porque gosta de mim!”, “Ele vai se tratar e mudar!”, “Ele só ameaça as pessoas porque é um momento ruim, ele não é assim!”
Pode parecer uma comparação desproporcional, mas em ambas estamos mantendo relações que nos prejudicam sem tomar nenhuma atitude. As coisas não vão se resolver sozinhas. É importante sairmos da zona de conforto e buscar mudanças positivas a cada dia.
É a hora de agir, vamos fazer nossa pequena mudança. Aos usuários Apple, sugiro pular para o penúltimo parágrafo, pesquisar o que é jailbreak e cydia, ou melhor ainda, preços de novos celulares.
Vamos tratar aqui da melhor alternativa de loja de aplicativos para Android: o F-droid, ferramenta que disponibiliza apenas apps em Software Livre. Outras opções como o Galaxy Store da Samsung, Amazon Appstore, Xiaomi GetApps e o Aptoide, podem ser consideradas, mas possuem a mesma lógica da Google.
Tenho demonstrado nesse espaço que o Software Livre é a única maneira de garantir nossa real liberdade no mundo digital. Apenas com acesso ao código é possível verificar se o software respeita nossa privacidade e o que ele realmente faz.
Já escutei que a discussão sobre Software Livre é antiga, já passou. Até concordo, simplesmente porque os profissionais e pesquisadores já estão convencidos das suas vantagens. Porém, temos problemas adicionais a resolver, como neutralidade das redes, criptografia completa de tráfego, fim do rastreamento massivo, limites para tecnologias fechadas, computação em nuvem[5] e, principalmente, uma nova relação com as tecnologias. Claro, ainda falta espalhar ainda mais soluções livres.
O recente caso do WhatsApp que impôs um termo de serviço abusivo[6], sem perguntar de forma clara para os usuários se eles aceitam ou não a mudança, demonstra esse desequilíbrio. Caso você tenha dúvidas sobre esse tema verifique se você aceitou os novos termos. Eu e dezenas de pessoas com quem conversei, não realizaram explicitamente a autorização. Vamos denunciar esse abuso para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados[7]?
Voltando à nossa loja, o F-droid é, sem comparação, a melhor opção existente. Ela é gerida pela própria comunidade de Software Livre e possui um processo criterioso para aceitar ou não um software, superior às lojas das empresas monopolistas. Ela realiza testes no código e gera o aplicativo por ela mesma, garantindo a correspondência entre o fonte e o software. Destaco que os processos utilizados pela comunidade de Software Livre são normalmente rigorosos, garantindo ambientes potencialmente mais seguros.
Já as demais lojas, como não possuem acesso ao código, precisam aceitar as informações recebidas. Muitos casos de aplicativos com vírus, funcionalidades não desejadas ou que enganam os usuários já foram registrados.
Para adicionar a loja F-droid no seu dispositivo Android, faça download do instalador nesse link, ou aponte sua câmera para o qrcode e siga os passos abaixo[8].
[1]Acho engraçado esse conceito. Todos meus relacionamentos deram certo. Por um tempo.
[2]https://en.wikipedia.org/wiki/Epic_Games_v._Apple
[3]https://support.apple.com/pt-br/HT201954
[4]Apple foi multada por intencionalmente tornar modelos antigos lentos, ou seja, a chamada obsolescência programada:
https://www.bbc.com/news/technology-51706635
[5]É sempre importante reforçar que um computador em nuvem nada mais é do que um computador de outro.
[6]https://revistaforum.com.br/debates/whatsapp-mudanca-nos-termos-de-servico-ataca-nossa-privacidade-por-deivi-kuhn/
[7]https://www.gov.br/anpd/pt-br
[8]O Google não permite na sua loja concorrentes diretos.
Ao abrir o arquivo você precisará habilitar a instalação de fontes desconhecidas. Você será notificado que não há permissão para essa instalação e haverá na janela uma opção para configurações. Habilite a opção “permitir desta fonte”. Selecione a seta de voltar e escolha na tela “instalador de pacotes” a opção “instalar”. Como o ambiente android permite customizações, essas opções podem ser diferentes conforme o seu dispositivo.
Ponto, você pode abrir a sua nova loja e ter a tranquilidade que sua privacidade será respeitada, que receberá informações sobre o comportamento dos apps e que os códigos fonte estão disponíveis para auditoria.
Vou detalhar em outro momento os aplicativos interessantes nessa loja, mas para quem quiser se aventurar, já tenho algumas indicações iniciais: NewPipe, DuckDuckGo, ImagePipe, Jisti Meet, Netguard, Telegram e VLC.
Para manter o ecossistema de Software Livre em constante crescimento é importante realizarmos doações para os desenvolvedores que trabalham nesses projetos. Nada mais justo que contribuir cada um de acordo com a sua possibilidade.
Basta de relações abusivas!
*Deivi Kuhn é analista de sistemas, ativista por um mundo com conhecimento e tecnologias livres e compartilhadas.
Com colaboração de Adail Spínola Horst.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.