Por João Paulo Martinelli *
O STJ julgou, recentemente, um caso de condenação criminal, em Minas Gerais, que envolve um homem acusado de furtar dois steaks de frango no valor total de R$ 4 (quatro reais). Os ministros responsáveis pelo julgamento desabafaram na sessão diante do tempo perdido e da energia gasta enquanto há problemas mais importantes com que a Justiça se preocupar. Infelizmente, o sistema de justiça penal prefere acreditar que essa prática reiterada é capaz de resolver os problemas da criminalidade no país, deixando de reconhecer a insignificância desses fatos.
O que a jurisprudência denomina “princípio da insignificância” é a inexistência de ilicitude pelo prejuízo irrelevante provocado por um comportamento previsto na lei como delito. Isto é, mesmo que a conduta esteja formalmente prevista como crime, se o dano for irrelevante, deve-se desconsiderar a responsabilidade penal porque eventual pena aplicada será ineficaz e desproporcional. O fato não deixa de ser moralmente reprovável, no entanto, não é com a aplicação de uma pena criminal que o conflito será solucionado. Ao contrário, os problemas serão maiores tanto para o acusado quanto para o Estado. A insignificância, assim, deve levar em consideração o custo do processo, não a condição da vítima.
Ao insistir em processar e condenar pessoas acusadas de pequenos furtos, mesmo que apenas tentados, as autoridades públicas criam problemas para o próprio sistema de justiça, além de causarem feridas na vida do condenado. A população carcerária aumenta, funcionando como alimento para as facções criminosas, pois a sobrevivência do preso depende de se aliar ao grupo que domina o cárcere. Também a lentidão dos tribunais se agrava com o exame de casos que sequer deveriam chegar à primeira instância diante da irrelevância do dano. E, como consequência, associações de magistrados e de promotores e procuradores pedem a retirada de garantias individuais, como a prescrição, porque estas seriam as verdadeiras causas da impunidade. Por fim, o acusado é punido mesmo que não haja condenação final, já que a simples condição de réu lhe trará prejuízos pela estigmatização social.
É evidente que o Estado não pode aceitar como normal a prática de furtos de pequenos valores. Quem o faz encontra alguma dificuldade financeira, problemas com família, ou ainda crises geradas pelo desemprego. Ou seja, cabe às autoridades buscar a causa desses comportamentos e dar o mínimo de dignidade às pessoas. A aplicação de pena só provoca maiores prejuízos ao acusado, que recebe uma sanção violenta por um fato sem gravidade, e ao Estado. Os pequenos furtos revelam que o problema está além da legislação penal e que sem políticas sociais não será resolvido. Ademais, a cada processo com valores irrelevantes diminui o espaço para atuação em crimes realmente graves, que acabam prescrevendo.
Talvez seja coincidência, talvez seja proposital, mas esses casos de pequenos furtos sempre envolvem pessoas pobres, que sequer possuem condições de contratar um advogado, e que, se não fosse o belo trabalho desempenhado pelas defensorias públicas, estariam abandonadas à própria sorte. São inúmeros os casos semelhantes a esse furto de quatro reais que aparecem com frequência nos tribunais, o que demonstra que a pena, nessas situações, não atende às finalidades de prevenção. Furtar é moralmente errado, porém, o sistema de justiça penal é o instrumento mais violento do Estado e não pode ser aplicado como se fosse uma bazuca matando uma mosca. Tem-se a impressão de que o Brasil não enfrenta problemas sérios e, por isso, pode gastar tempo e dinheiro para perseguir e punir vulneráveis por comportamentos penalmente irrelevantes.
*João Paulo Martinelli é advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra (Portugal) e professor do IBMEC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.