Por ADJ *
Foi aprovado na Câmara de Deputados requerimento de urgência sobre o PL 2213/2021, que altera a Lei de Execuções Penais, tornando obrigatória a realização do exame criminológico para a obtenção da progressão de regime e saída temporária. Referido exame consiste na análise psicossocial do apenado, para efeito de avaliação das condições de seu retorno à sociedade de forma harmônica e integrada.
Há um retrocesso na medida, criada como pílula milagrosa para satisfazer sentimentos paranoicos coletivos de vingança, em razão do evento ocorrido com Lázaro Barbosa de Souza, que teria se evadido após progredir ao regime semiaberto e obtido o direito de saída temporária, numa evasão absolutamente excepcional, dentro do universo dos milhares de apenados em regimes intermediários, que todos os dias voltam correta e pacificamente para o cárcere, ao término do período concedido para a visita familiar. A lei penal não pode ser modificada a cada caso midiático que se apresenta, como historicamente tem acontecido em nosso país e como comprovadamente em nada tem contribuído para a redução da violência. O fato é que o exame criminológico já existe e tem sido realizado a partir de critérios judiciais. Torná-lo obrigatório o fará cair na vala comum, resultando exatamente em mais situações como as ora vivenciadas.
No passado, referido exame chegou a ser obrigatório, mas houve uma evolução e, com a entrada em vigor da Lei n.10.792, de 01/12/2003, o legislador resolveu deixar a cargo do juiz da execução penal decidir sobre a sua realização ou não. No caso de opção pela feitura, segundo firmado na jurisprudência, o juiz passou a ter que fundamentar a decisão (Súmula 439, do Superior Tribunal de Justiça - Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada). Em resumo, atribuiu-se a matéria ao crivo daquele que por definição constitucional tem o dever de executar as penas, individualizando-as de acordo com a situação de cada condenado, qual seja, o juiz da execução penal.
Mas, outra vez, na esteira do malfadado pacote anticrime, outro projeto penal de emergência ganha fôlego, alimentado em uma legislação vetusta e ideologicamente comprometida com políticas de neutralização, segregação e opressão das camadas mais pobres da população, destinada a sedimentar o poder de uma casta branca e a encarcerar massivamente jovens pretos e pardos.
Sem adentrar na discussão da ausência da participação popular no processo legislativo, a proposta conduzirá a um colapso maior que o já existente no sistema carcerário brasileiro, sobre o qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu em Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF347). O país, em números inexatos, possui mais de 748 mil pessoas presas, para cerca de 440 mil vagas. A superlotação ultrapassou todos os limites da ilicitude tolerada. A linha do mínimo existencial foi rompida e é mais do que tempo de superar a violência e enfrentar a odiosa cultura do direito penal, através do fortalecimento da cidadania e da dignidade da pessoa humana, numa sociedade livre, justa e solidária, como prega a Constituição.
Por todas as unidades prisionais do país, ressalvadas raras exceções, detentos vivem sem colchão para dormir, sem kit-higiene, sem trabalho, sem estudo, sem acesso à saúde, coisificados nesses navios negreiros do século 21. E a ausência do estado dentro das prisões, além de por si só causar o horror, tem feito nascer e crescer nos corredores do sistema facções e organizações paralegais. Quando preso, é preciso sobreviver, para tanto é preciso se aliar, mesmo que para lutar contra o estado, de forma mais violenta. Ou seja, o sistema penitenciário brasileiro está falido, as chibatadas do senhor feitor não cessam, os calabouços coletivos continuam lá a lembrar que neste país nem todos os seres humanos são tratados como seres humanos.
O PL 2213, se aprovado, aprofundará essa tragédia, pois fará dificultar ainda mais as progressões de regime e saídas temporárias, criando novo obstáculo, indo diretamente ao encontro do já colapsado sistema carcerário. São milhares de progressões de regime e saídas temporárias avaliadas diariamente por juízes da execução penal, tudo a partir de uma análise individual. Tornar o exame criminológico obrigatório, retroagindo no tempo, demandará mais recursos humanos, dentre eles mais psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. É sabido que o estado sequer tem suprido as unidades prisionais com policiais penais, encontrando-se muitas sob controle dos próprios presos. Como esperar que haja contratação dos citados profissionais?
É certo assim que além de atrasar o trâmite dos processos e análise de direitos legalmente previstos, pois os exames não serão feitos em tempo, a medida é despida de fundamento científico e ineficaz ao resultado que se propõe, ou que deveria se propor, de redução da reincidência. Mais, carece ela de avaliação do impacto legislativo, conforme art.113 do ADCT, que aponte os reflexos sociais e orçamentários dela decorrentes.
Apesar de que possa parecer tentador buscar a solução fácil, novamente numa prática que comprovadamente não deu certo, seria interessante antes começarmos a nos perguntar, como sociedade, porque queremos a volta de um exame que comprova justamente a falência de um sistema que tanto se diz ser a solução.
Os fundamentos da civilidade estão sendo envenenados. Abandonam-se os valores culturais, esquecem-se dos expertos e criam-se medos e tragédias sociais. O objetivo é fortalecer o estado policial para, então, reduzir os direitos humanos e os paradigmas constitucionais a meros obstáculos ao enfrentamento do crime.
A violência e o holocausto das prisões brasileiras pesarão em nossos ombros. Essa dor, esse flagelo, essas violações humanas são sobre nós, sobre o que somos e sobre o que desejamos como nação. Que o parlamento rejeite o PL 2213, que com a espinha ereta e a cabeça erguida defenda a Constituição, pois ela ainda é o pilar da nossa democracia. Há tempo.
*AJD é a Associação de Juízes para a Democracia.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.