A violência contra a mulher como crime de tortura – Por Solange Massari

Sabemos que nenhuma mulher é morta antes de sofrer tortura psicológica. Aliás, na relação de opressão, a morte de uma mulher simplesmente por ser mulher não é a primeira etapa de um feminicídio

Foto: asbrad.org
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Por Solange Massari *

O Brasil vive uma situação de barbárie e a violência tornou-se um ato cotidiano. Tem sido cada vez mais notável a insensibilidade diante da morte e do sofrimento do outro que o brasileiro desenvolveu dentro de si, sobretudo nos dias de hoje, em que ao mesmo tempo que há mais de 500 mil pessoas mortes em decorrência da Covid-19, ainda assim há aqueles que estão vivendo à beira da ignorância e do negacionismo mesmo diante de uma convulsão política, econômica, social, ambiental e sanitária.

É neste mesmo país, no qual uma parcela da sociedade vive como se nada acontecesse no seu quintal, que minorias são mortas e torturadas simplesmente por serem negras, indígenas, LGBTQIA+ e mulheres. É no país verde e amarelo, da alegria do samba e do futebol, que a vida do outro pouco importa, a não ser que afete os interesses de alguém imponente. Darcy Ribeiro já nos apontava, em 1995, em sua obra “O Povo Brasileiro”, que “a mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária”.

Há 24 anos o Brasil avançou com uma nova tipificação de crime. Era o art. da Lei nº 9.455, que trata sobre tortura. Com esta alteração, a tortura passou a ser considerada como o ato de constranger alguém com o emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental em razão de discriminação de gênero. Entretanto, é preciso compreender como se caracteriza a discriminação em razão do gênero e por que essa mudança na lei é de grande valia na luta pelo fim da violência contra a mulher.

É através de Maria Amélia Teles e Mônica de Melo, duas grandes estudiosas sobre questões de gênero, que se entende os motivos por de trás da discriminação e da violência contra as mulheres. Segundo as autoras, a questão de gênero representa “uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher, demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos” (TELES, Maria A. De Almeida. MELO, Mônica. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2002).

Nesse sentido, é possível afirmarmos que, ao estabelecer diferenças hierárquicas nos papéis de gênero, a mulher é posta como submissa nesta relação de poder e, portanto, se torna objeto de controle de quem se considera superior. A partir dessa relação de opressão, a mulher é quem deve ser eliminada ou inferiorizada. Logo, é sobre ela que recairá a violência, tendo como objetivo o controle da sua vida e a continuidade da relação de poder e da desigualdade de gêneros. É importante ressaltarmos que a questão de gênero não está apenas na relação pessoal entre homem e mulher, mas em toda estrutura social que constitui as relações sociais.

Sabemos que nenhuma mulher é morta antes de sofrer tortura psicológica. Aliás, na relação de opressão, a morte de uma mulher simplesmente por ser mulher não é a primeira etapa de um feminicídio ou de uma agressão, pelo contrário: há anteriormente todo um longo processo de tortura. O agressor constrange, mediante violência ou grave ameaça, não bastando uma mera humilhação, chantagem, ridicularização, depreciação, desprezo, entre outras situações vexatórias. No entanto, esse tipo de violência, mesmo quando é um ato de grave ameaça, normalmente não é reconhecida pelas vítimas ou mesmo pela sociedade como tortura.

Quando vemos notícias sobre discriminação e violência contra a mulher, é preciso sempre nos questionarmos como é para ela o último momento da sua vida nas mãos do seu agressor, que além de chutar, gritar, esmurrar, enforcar, ainda a esfaqueia. Qual o terror vivido nesses últimos momentos? O quanto a tortura está posta nessa situação e muitas vezes entre quatro paredes, ou até mesmo dentro de um carro? Relatos diversos nos remetem aos momentos de terror e de tortura que as mulheres passaram nas mãos de seus algozes:

"Ele colocou uma arma na minha cabeça e falou que ia me matar, pois não queria filho". Essa foi uma das várias cenas de terror vividas por uma mulher de 38 anos, grávida de seis meses, em um ciclo de violência praticado dentro de casa pelo ex-companheiro em Ji-Paraná (RO), região central do estado. (fonte g1/ro - 25/05/2021)

"Ele pegou uma faca e disse que ia me matar, mas que antes ia cortar meu cabelo. Isso tudo enquanto pisava nas minhas costelas depois de ter me jogado no chão. Meu vizinho que me socorreu. Se ele não tivesse chegado, ele teria me matado" (fonte g1/ro - 25/05/2021)

“Às vezes eu tava dormindo e quando eu via, tava sem roupa já, ele tinha tirado tudo. Eu chorava e pedia por favor, e ele dizia: Tu não é minha mulher? Ele vinha pra cima de mim e eu não tinha como sair de baixo, ele segurava os meus braços e ele botava os pés em cima dos meus pés” (artigo: A violência doméstica a partir do discurso de mulheres agredidas - Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre jul. 2013)

“Uma vez eu tava conversando com um colega e ele enlouqueceu de ciúmes. Me pegou, me botou dentro do carro e começou a me empurrar, me pegou pela blusa e me socava contra o carro, eu fiquei toda roxa, toda machucada... Daí eu lembro que, quando chegamos em casa, ele dizia que ia me matar. Ele via coisas e me ameaçava, sabe? (artigo: A violência doméstica a partir do discurso de mulheres agredidas - Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre jul. 2013)

Segundo dados de 2020, todos os dias uma mulher é morta a cada nove horas no Brasil. Assim, tão importante como denunciar casos de violência contra a mulher, é termos a coragem de tratá-los como tortura. Mais do que isso: indignar-nos diante da violência e sermos sensíveis à dor do outro é fundamental para que não nos afundemos cada vez mais em uma convulsão sem fim como hoje, para finalmente sermos mais solidários, como bem dizia Darcy Ribeiro. É imperioso, portanto, que se traga essa temática para dentro do debate da sociedade, pois enquanto não tratarmos a violência contra a mulher como mecanismo de tortura, continuaremos a ver casos surras, agressões, empurrões, ameaças, estupro no casamento, facadas e mortes na mídia e no nosso cotidiano.

*Solange Massari é mestre em Serviço Social e defensora dos direitos humanos. 

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.