Por Dimas Antônio de Souza *
Mito, em uma de suas acepções mais simples, é sinônimo de mentira. Entretanto, quando nos aprofundamos no estudo sobre o mito, percebemos que se trata de um fenômeno muito mais complexo, analisado por diversas disciplinas, sendo que, na Ciência Política há um campo de estudos em mitologia política. Sob essa perspectiva, a política é analisada não sob seus aspectos racionais, mas por seus elementos motivadores inconscientes, irracionais, por assim dizer.
Como explicar que um capitão de carreira militar duvidosa, deputado federal do baixo clero, agressivo nas palavras, preconceituoso, autoritário, saísse de sua quase insignificância e fosse catapultado à Presidência? Como um presidente com desempenho pífio em todas as áreas, que desdenhou do vírus, da pandemia, dos doentes e da vacina, sendo diretamente o responsável pela política de morte adotada, conta ainda com tanto apoio popular?
Não duvidamos que muitos espertalhões lucraram com a cloroquina, assim como há muitos interessados em acabar com as terras indígenas, com as reservas naturais, com os direitos trabalhistas, com os serviços e o patrimônio públicos e a soberania nacional, e que, por esses motivos, por assim dizer racionais, estão com o governo. Mas, esses são a ínfima parte dos que apoiam o governo Bolsonaro. Então, como entender a idolatria que uma boa parcela de brasileiros tem por ele?
No Brasil, a velha mitologia da conspiração comunista tomou novos alentos a partir do momento que o senhor Olavo de Carvalho transformou o Foro de São Paulo na maior organização criminosa do mundo, uma vez que, segundo o mesmo, de forma inédita o Foro de São Paulo havia promovido uma simbiose entre os partidos de esquerda e o crime organizado, obtendo proveitos mútuos.
À medida que os partidos de esquerda na América Latina, em especial o PT no Brasil, foram obtendo sucesso eleitoral, foi se solidificando nos setores médios da sociedade a convicção de que tal partido se transformara em uma quadrilha que, de assalto em assalto aos cofres públicos, jamais perderia as eleições. Foi contra a conspiração do mal que se sublevaram os cidadãos de bem. Aliás, essa é a verdadeira função das mitologias conspiratórias, uma vez que, ao excitarem o imaginário apocalíptico, desumanizando o inimigo a ponto de atribuir-lhe poderes demoníacos, elas ativam aos “do bem” a organizarem o seu contracomplô (Girardet).
Sendo o mito uma chave para a interpretação da realidade, ele a traduz-se num conjunto de imagens articuladas e simples, facilmente assimiláveis e fortemente mobilizadoras (Sorel). Foi dessa crença pueril que se desenvolveu nos quarteis, nas magistraturas, no Ministério Público e entre os profissionais da mídia convencional a ideia esdrúxula de que, qualquer arma, mesmo as ilegais, valeriam para combater tais forças. E foi por essa crença que, principalmente os profissionais de mídia, se calaram, quando não se curvaram, diante das ilegalidades cometidas por Moro e os procuradores de Curitiba ao desestabilizarem o governo Dilma e ao caçarem implacavelmente o presidente Lula.
Foi também esse imaginário apocalíptico que traduziu a luta política na batalha final entre o bem e o mal, que fez emergir Bolsonaro como o salvador. A direita convencional, ao aderir ao lavajatismo e ser por ele golpeado, não mais conseguiu segurar as suas bases políticas. De repente, vimos os eleitores de FHC, Serra, Alckmin e Aécio de camisa verde e amarelo gritando mito. Afinal, a direita educada não reuniria mais as qualidades necessárias para combater o próprio demônio. Era preciso alguém que representasse a indignação do cidadão médio, sua arrogância, acompanhada de sua ignorância e o seu repúdio a qualquer tipo de bons modos.
O fato é que, ao encontrar massas predispostas e interessadas pela política o vírus do totalitarismo proliferou (Arendt). E, ao que tudo indica, será muito difícil retornar com o gado aos antigos currais da democracia liberal. Enquanto isso, Bolsonaro segue firme ao segundo turno das eleições de 2022 – suas redes sociais continuam ativas na produção de mentiras, ao mesmo tempo que reforçam a mensagem de que que o mito precisa de apoio em sua cruzada contra o comunismo gayzista bolivariano. E não será com meias verdades que iremos derrubá-lo.
*Dimas Antônio de Souza é professor do Instituto de Ciências Sociais da Pucminas e autor de “O mito político no teatro anarquista brasileiro”.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.