Por Fábio Palácio e Theófilo Rodrigues *
Em 2017, o Congresso Nacional aprovou a mais deletéria reforma do sistema eleitoral brasileiro. Com a Emenda Constitucional 97/2017, inseriu-se no ordenamento jurídico do país o mecanismo conhecido como cláusula de barreira. A mesma EC fez uma intervenção na dinâmica partidária ao proibir que legendas organizassem coligações para as eleições proporcionais. O objetivo dessas duas medidas era claro: fazer desaparecer do sistema político brasileiro os pequenos partidos, a maior parte deles ideológicos como PCdoB, Rede, PSOL, PV, Cidadania, PCB, UP e PCO.
Essa alteração institucional ocorreu ao mesmo tempo em que mudanças sociais e políticas aconteciam no Brasil. O impeachment de Dilma Rousseff havia acabado de ocorrer e Michel Temer era o novo presidente da República. Tudo isso culminou com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Essa reforma eleitoral foi sintomática, portanto, da hegemonia liberal-conservadora que se instalava no país.
É natural que hoje, quando surge a perspectiva da formação de uma nova hegemonia, certa reorganização partidária reflita esse movimento de “placas tectônicas”. Mas é preciso observar as condições políticas, ainda predominantes, em que esse processo ocorre. Essa reorganização político-partidária, ao ocorrer sob a égide de uma legislação antidemocrática – materializada na famigerada cláusula de barreira –, pode atentar contra o pluralismo político. A introdução de restrições no sistema partidário sufoca a diversidade de opiniões efetivamente existente em uma sociedade vasta e variegada como a brasileira.
Vale lembrar o que dizia um dos maiores cientistas políticos brasileiros em meados da década de 1990. Em “Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico”, livro de 1994, Wanderley Guilherme dos Santos criticava assim a possibilidade de aprovação da cláusula de barreira:
“Em filosofia política, igualmente, é dificílimo justificar qualquer legislação extinguindo partidos ou impondo barreiras à representação. [...] Ainda que a Câmara legislasse por unanimidade o contrário e o eleitorado referendasse unanimemente tal legislação, ainda assim ela seria antidemocrática. Direitos políticos fundamentais transcendem maiorias e unanimidades e o direito à representação, conforme a escolha de cada um, é um direito fundamental” (p. 14).
Como se vê, Wanderley Guilherme sempre foi crítico da ideia de cláusula de barreira. Quando, em 2007, o tema voltou para a agenda do Congresso Nacional, Wanderley imediatamente percebeu a necessidade de publicar um novo livro que desmentisse alguns dos argumentos antidemocráticos em favor da cláusula. Foi o que fez em “Governabilidade e democracia natural”, livro em que sustentou: “Cláusulas de barreiras não são mecanismos para prevenir excessos de fracionalização, mas mecanismos para reduzir a competição e a representação político-partidárias” (p. 109).
Assim como Wanderley, também entendemos que as deficiências de nossa democracia não decorrem da existência de pequenos partidos. Ora, quais foram os partidos responsáveis pelo mais recente ataque à Constituição e à democracia no país que foi o impeachment de Dilma Rousseff em 2016? Será que esse golpe parlamentar foi levado adiante por meia dúzia de partidos pequenos que possuem um, dois, três, cinco ou seis deputados? No mesmo sentido, podemos dizer que a ingovernabilidade de 2015, fomentada inclusive pelas chamadas “pautas-bombas”, foi obra dos pequenos partidos?
O sistema partidário evidentemente perde, como disse o presidente Lula, quando legendas com ideias e programas claros, e com rica história política, como PCdoB, PSOL, Rede e PV, são alijadas do Parlamento – espaço de importância transcendente na vida pública nacional. Não dá para dizer que se faz isso em nome da melhoria do sistema partidário, pois a força de um partido não está só em seu número, mas sobretudo em suas ideias.
Tirar essas legendas do Parlamento é uma forma de inviabilizar as minorias, tornando-as forças meramente testemunhais. Trata-se daquilo que em Teoria Política conhecemos como “tirania da maioria”. Isso faria realmente bem ao sistema político, como alardeiam algumas vozes? Gostaríamos de nos deter em apenas uma das legendas: o Partido Verde. Os verdes são corrente política relevante na Europa e em várias partes do mundo. Não fazem sentido na política brasileira?
É evidente, portanto, que o número de partidos não é obstáculo à governança. Mas, se o objetivo é oferecer maior clareza ao sistema partidário, que o façamos através do estímulo às frentes políticas, e não por meio da extinção de programas e identidades nítidos, que enriquecem o dissenso e contribuem para a qualidade da deliberação.
Nesse sentido, a proposta de federações partidárias é a única que permite reorganizar o sistema partidário melhorando-o, democratizando-o, modernizando-o através de novos formatos de frentes político-partidárias. A proposta de federações partidárias permite uma convergência legítima e não artificial – como na cláusula de barreira – do sistema partidário, convidando forças de um mesmo campo político ao entendimento e à concertação sem que seja necessário extinguir siglas programáticas, que representam correntes de opinião vivas e atuantes, algumas delas com forte presença nos movimentos sociais e no universo associativo, e que, se hoje não vivem um momento de expansão, já se mostraram capazes de grandes contribuições à vida democrática.
Com as federações partidárias, partidos ideologicamente semelhantes podem se unir em torno de uma única frente política de longa duração. Esse sistema possui duas vantagens principais: por um lado, facilita a compreensão do eleitorado, que passa a enxergar de forma mais transparente para onde apontam as alianças políticas; por outro lado, mantém vivos partidos tradicionais, com seus vínculos na sociedade civil e seus programas e símbolos que já fazem parte da história política brasileira.
Para certas vozes do mercado, o associativismo político é um grande mal a ser combatido. Bradam aos quatro ventos: “Viva a tecnocracia, abaixo os partidos!” Para os democratas, o sentimento é inverso: a única salvação está na pedagogia da participação, na potência do encontro, na liberdade para o fazer político.
* Fábio Palácio é jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão.
* Theófilo Rodrigues é cientista político, pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ e autor do livro "Partidos, classes e sociedade civil no Brasil Contemporâneo", com lançamento previsto para julho de 2021.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.