Por Letícia Montandon *
No Brasil, as poucas famílias donas dos principais grupos de comunicação – no que diz respeito à audiência – ditam desde banalidades como a roupa da moda até a endemonização de partidos políticos e a criação de pseudo-heróis nacionais. Cristalizado como privado, sem representatividade, alheio ao interesse público e fechado ao exercício da liberdade de expressão, o sistema midiático brasileiro não tem pudor ao distorcer ou (re)construir a realidade, como foi feito no último dia 29 de maio, com as manifestações pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Alheios a qualquer responsabilidade pública, jornalões e principais telejornais simplesmente ignoraram centenas de milhares de brasileiros e brasileiras em marcha nas ruas de todo o país, mesmo diante da pior crise sanitária do século, para tirar da principal cadeira do Executivo federal aquele que vem sendo indicado formalmente em uma CPI como o principal responsável pela morte de quase meio milhão de pessoas.
A estratégia do deixar de fazer ou de reescrever o real com notícias carentes de fatos não é novidade. Em 1984, por exemplo, a TV Globo publicou que as manifestações em defesa da democracia e pelas Diretas Já eram comemorações pelo aniversário de São Paulo. Historicamente, atos de movimentos sociais são marginalizados e apresentados como “perigosos” para a sociedade. No relatório “Vozes Silenciadas”, de 2011, realizado pelo Coletivo Brasil de Comunicação Intervozes, a análise de cerca de 300 matérias sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, publicadas pelos principais jornais impressos e televisivos durante as investigações de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre o MST, mostraram que, sem nenhuma comprovação, o Movimento é tratado como “violento” e suas reivindicações, respaldadas pela Constituição Federal, recebem pouco destaque. Outro estudo do “Vozes Silenciadas”, realizado em 2019, mostrou que a reforma da Previdência, um dos principais projetos do governo Bolsonaro-Guedes, foi tratada pelos principais jornais impressos e televisivos de maneira totalmente favorável à proposta. Ausência de fontes contrárias à reforma da Previdência, defesa indiscriminada da proposta em editoriais e ampla visibilidade para representantes do Ministério da Fazenda foram algumas das constatações do relatório. O resultado foi a aprovação da reforma da Previdência, promulgada em novembro de 2019. Mais ainda, todos os dias, dezenas de jovens das periferias de todo Brasil, a maioria negros, são assassinados pela polícia e nada se fala sobre isso.
A desfaçatez nociva da mídia comercial agora repete a receita histórica que objetiva a manutenção de um sistema de privilégio à custa da miséria e da morte. Sobre o cadáver de quase meio milhão de pessoas e a dor de tantas outras milhares; sobre a indignação e a revolta de centenas de milhares de brasileiros e brasileiras, os principais meios de comunicação, como O Globo e Estadão, estamparam notícias sobre turismo e um ilusório reaquecimento do PIB, enquanto o fato era a mobilização nacional pelo Fora Bolsonaro. Quando muito, citaram superficialmente as manifestações históricas, mas indicando-as como meras “aglomerações” ou mesmo sem falar que o principal objetivo dos atos era o impedimento de Bolsonaro e a consequente ampliação da política de vacinação contra a covid-19.
Não fossem os veículos da chamada mídia independente, como a Mídia Ninja, o Brasil de Fato, a Revista Fórum, a comunicação das centrais sindicais e dos sindicatos, como CUT e o próprio Sinpro-DF, além da mídia estrangeira, as imagens das manifestações registradas nesse 29 de maio pelo impeachment de Bolsonaro seriam entendidas apenas como uma epifania da esquerda, assim como a Covid-19 foi considerada uma “gripezinha” pelo presidente do Brasil. Para se ter uma ideia, segundo a Central dos Movimentos Populares (CMP), só em São Paulo, cerca de 80 mil pessoas foram à Avenida Paulista, como mostra matéria publicada pela CUT Brasil. De acordo com a matéria, 213 cidades brasileiras dos 26 estados e do DF, além de 14 cidades no mundo, realizaram manifestações contra Bolsonaro e sua política genocida. Le Monde, da França; a BBC de Londres; o canal Al Jazeera, do Catar; a agência estatal do Kremlin RT, da Rússia; o indiano Times of India; o argentino La Nación, entre tantos outros, também abordaram as manifestações, não por questões ideológicas, mas porque a relevância do interesse público e o respeito aos fatos é o mínimo para qualquer jornalismo que se preze.
Com a permissividade dos diversos governos brasileiros, há décadas o sistema de comunicação do País registra a cooperação entre empresários ligados aos veículos de comunicação de massa e setores dominantes, interessados na legitimação do “sistema”. Na relação profana, o direito humano à comunicação é substituído por um sistema de “produção” descompromissado com a mensagem transmitida. Por outro lado, a sociedade civil, historicamente, se mostra empenhada em reverter esse cenário. Exemplo disso é o Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação – composto por sindicatos, associações e outras organizações da sociedade civil –, que há 30 anos vem lutando por um sistema de comunicação que amplie os espaços de fala ao mesmo tempo em que propicie, através de políticas públicas, os meios e as tecnologias necessárias para expressar as diversas opiniões, pondo fim ao fatal oligopólio da mídia brasileira.
Indiscutivelmente, as manifestações pelo impeachment de Bolsonaro, realizadas no dia 29 de maio, escancararam a urgência da democratização da comunicação. Ainda observada como secundária nos planos de ação das diversas entidades sindicais e de organizações da sociedade civil, a pauta é estratégia imprescindível para a defesa da própria democracia. Enquanto apenas as vozes de poucas famílias forem ouvidas, ficaremos fadados aos mandos e desmandos de quem tira do povo o protagonismo de suas próprias vidas e emplaca, com o trampolim da desinformação, o governo de ditadores e fascistas.
*Letícia Montandon é professora da rede pública de ensino do DF e coordenadora da Secretaria de Imprensa do Sinpro-DF.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.