Por Priscila Costa *
Kathlen Romeu. Maria Cecília e Viviane Soares. Bruno e Yan. Miguel Otávio. Ágatha Félix. Davi Fiúza. João Pedro. Chacina do Jacarezinho. Chacina do Cabula. Chacina de Osasco. Tantos nomes. Tantas vidas interrompidas. Tantas famílias em luto. Infelizmente, não faltam exemplos. Ser negro no Brasil é abrir as notícias e ver que a violência contra os nossos é chancelada pelo Estado. Mulheres grávidas, crianças, jovens, bebês que ainda nem vieram ao mundo, pais e mães de famílias. É genocídio. É todo dia. É matar ou deixar morrer. É necropolítica pensada e programada.
A cor da violência é explícita. Nenhuma dessas mortes é coincidência. Certamente não aconteceriam sob outros corpos e pessoas com características vindas de lugares sociais privilegiados. As ações violentas e letais da polícia têm destinatários certos: negros e negras das periferias. O racismo é o vetor que fundamenta, autoriza e normaliza práticas tão brutais. É um modelo de produção de morte construído a partir dos estereótipos e estigmatizações reproduzidas pelo racismo estrutural ao longo de séculos.
Toda vez que mortes negras ocorrem, precisamos encontrar inúmeras formas de falar as mesmas coisas para sermos ouvidos. Não faltam relatórios do Mapa da Violência, dados, porcentagens e pesquisas para comprovar a guerra e o terror racial que vivemos no Brasil. Todas as vezes também que essas mortes acontecem, vemos o fracasso que é o modelo de segurança pública baseado na lógica da hiper-repressão seletiva: mais armas, mais gente presa e mais violência; megaoperações policiais que produzem mais manchete do que segurança pública; uma guerra que, definitivamente, não é contra o tráfico de drogas, mas contra gente negra e pobre.
A grande contradição é que a vida não é uma prioridade da segurança pública. A guerra às drogas é uma farsa. O próprio nome já aponta as contradições. Não existe guerra contra “as drogas”, porque não existe guerra contra um objeto. Não tem guerra contra cadeira, contra mesa, nem contra as drogas. As guerras são sempre contra as pessoas, tendo um inimigo como alvo. No Brasil, esse alvo foi escolhido desde 1535. As formas de repressão foram se renovando ao longo dos anos, mas sempre cumprindo o mesmo objetivo: de genocídio e controle geopolítico dos territórios em que vivem corpos negros.
A desumanização como a lógica da guerra
É impossível observar essa guerra sem considerar como foi construído o projeto de nação brasileira pós-abolição. A nossa sociedade se constituiu a partir de uma ideia de “inimigo interno” e uma distribuição desigual de possibilidades de vida, desenvolvendo um projeto de impedimento de alcance da cidadania da população negra, a partir da desumanização, para que fosse possível existir um conjunto de violências – do ponto de vista físico, mental, psicológico, cultural e coletivo. Esse projeto desumanizador dá alicerce para a lógica da guerra e de extermínio.
O racismo do Estado resulta no conceito desenvolvido pelo Achille Mbembe de Necropolítica – é a licença pra matar, das mais variadas formas. É a política de morte e de precarização da vida adotada por governos e instituições. É sobre quem tem mais ou menos direito à vida. É sobre o uso legítimo da força para uma violência totalmente ilegítima, pois o Estado não deve servir para operar a morte, mas para zelar pela vida.
O Brasil precisa de um profundo processo de reflexão, de restituição da memória e justiça, porque o Estado precisa ser responsabilizado por propagar e atuar para a manutenção dessa guerra. É preciso que até mesmo o Ministério Público e os tribunais de justiça, como instituições integradas ao Estado, sejam confrontados com a gênese racista presente desde a sua origem. Trata-se de uma condição necessária, no percurso que leva a uma postura mais ativa no enfrentamento dos crimes contra os nossos, praticados pelos agentes públicos. As investigações têm que andar, justiça precisa ser feita. Não aceitamos mais que esse assunto seja marcado apenas por datas, assassinatos e tragédias. Queremos pautar o debate, fazer dele uma agenda cotidiana na sociedade.
Eles não conseguiram nos fazer minoria
A democracia não é algo que dá para ser pensado do ponto de vista incompleto. Essa democracia que temos ainda não subiu aos morros, vielas e territórios onde o povo negro está. Muitos de nós estamos cansados de conhecer pessoas negras a partir de suas mortes. Mas também é preciso que se diga, mesmo com todo esse projeto de extermínio de Estado, a população negra ainda é maioria no Brasil. Somos o único país do mundo, fora do continente Africano, em que eles não conseguiram nos fazer minoria. O feito de chegarmos aos dias de hoje, em quatro séculos e meio, sendo 56% de população brasileira, tem algo a nos dizer.
Se chegamos até aqui, sem nenhum investimento do Estado, foi porque, como disse Sueli Carneiro e Vilma Reis, as nossas mais velhas plantaram sonhos de liberdade em nossas cabeças, porque criamos uma forma de pensar o negro no Brasil seguindo a pedagogia da desobediência. Somos maioria porque a nossa história é de resistência negra a partir dos quilombos, das irmandades negras, do samba, das rodas de capoeira, dos terreiros de candomblé e das inúmeras formas de reexistir que o nosso povo encontrou.
O projeto da morte orquestrado por eles, até aqui, tem sido bem sucedido. Mas o nosso não está derrotado. Em nossa trajetória aprendemos a não nos dar por vencidos. É hora de não deixar que o projeto deles triunfe. Se a gente não falar sobre rebeldia, desobediência e revolta, a gente só vai falar sobre luto. Queremos e merecemos viver! Canalizemos nosso ódio para organizar a rebelião negra que virá.
Nem de bala, nem de fome, nem de Covid. Povo negro vivo!
*Priscila da Silva Costa é comunicadora formada pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), ativista da luta antirracista e do movimento feminista.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.