Por Gustavo Ungaro *
O enfrentamento da grave pandemia deste século está a desafiar as instituições, chamadas a providências emergenciais voltadas à preservação do mais caro valor protegido pelo ordenamento jurídico, a vida humana.
Todos os direitos e garantias estipulados pela Constituição têm como núcleo axiológico essencial a vida humana, base da existência individual detentora de prerrogativas e obrigações, e condição para a convivência social e o desenvolvimento em todas as suas dimensões (ainda que atualmente proliferem exemplos nefastos de desprezo à vida e até mesmo de culto ao ódio e à morte do outro).
Assim como vem demandando mudanças de comportamentos e de perspectivas, a pandemia também impacta e exige novas respostas do ordenamento jurídico e do sistema de Justiça, sendo especialmente relevante a capacidade de apresentar soluções por parte da Administração Pública.
Daí o tema estar em destaque e ter sido realçado no 1º Congresso Paulista de Direito Público da OAB/SP, realizado em fevereiro de 2021, em painel intitulado “Lições para os sistemas de compras públicas a partir da Covid-19”, em que pude participar ao lado de Carolina Zancaner, sob a coordenação de Ronaldo Andrade e Paula Lippi, evento que homenageou a professora titular de Direito Administrativo da USP Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
Em panorâmica análise crítica desse insólito período marcado pelas vicissitudes do novo coronavírus, já superior a um ano, pode-se constatar que as medidas administrativas emergenciais, no plano governamental federal, foram centradas na fabricação estatal de fármaco sem eficácia comprovada, no desprezo pelas vacinas durante o ano passado, na tentativa de flexibilizar protocolos restritivos estabelecidos por estados e municípios, na concessão temporária de auxílio emergencial e subsídio a empregados com certas condições. No âmbito de estados e municípios, houve a montagem de estruturas provisórias para atendimento de doentes, restrições a locomoção, impedimento de aglomerações e paralisação temporária de atividades comerciais, culturais, esportivas e de entretenimento.
Como registro negativo, a pandemia do descontrole também ficará para a história da cidadania como momento utilizado por inescrupulosas tentativas de diminuir a transparência e limitar a atuação do controle interno, que só não prosperaram em virtude do adequado funcionamento do sistema de Justiça, e por incríveis escândalos de corrupção, com punição de gestores, secretários e até de governador de estado, e crescentes clamores pela inescapável responsabilização presidencial.
E o que poderiam ter sido as providências governamentais, se calcadas em maior apreço à ciência e aos princípios e valores que emanam da nossa Constituição?
Talvez priorização de investimentos em ciência e tecnologia, para tentativa de produção de vacina brasileira e de remédios eficazes, como pode ser o soro anticovid do Instituto Butantan; realização de iniciativas como pitch gov e hackatons, maratonas de inovação fomentadas pelo poder público para novas soluções de serviços e sistemas, adaptados às novas condições impostas pela letal propagação do coronavírus; maior testagem, para detecção precoce e monitoramento de contatos; ampliação da rede de atendimento permanente do SUS, ao invés de caras estruturas precárias; fortalecimento da rede de proteção social e desoneração tributária de alimentos básicos; ampla desburocratização e simplificação de exigências e procedimentos administrativos; processo eletrônico mais ágil e transparente (autorizações para atividades de baixo impacto e pequenas obras comerciais e residenciais poderiam ser automatizadas com base em informações autodeclaradas e firmadas por profissionais com responsabilidade técnica, com fiscalização pública por amostragem e responsabilização em casos de fraudes); mais medidas de prevenção ao invés de radicalizações extremadas.
Há também, felizmente, boas iniciativas a serem registradas, que ajudaram muitas pessoas no enfrentamento da pandemia, com base na solidariedade e na fraternidade.
Como registro positivo, vale mencionar o guia de contratações públicas elaborado pela Transparência Internacional e pelo Tribunal de Contas de União, auxiliando o gestor público a enfrentar os desafios das contratações emergenciais com segurança e zelo pelos parâmetros da legalidade e moralidade; a avaliação da transparência governamental da União, estados e municípios promovida pela Open Knowledge Brasil – OKBR; o desenvolvimento de equipamentos para auxílio a pacientes hospitalizados com restrições pulmonares severas, chamados de respiradores hospitalares de baixo custo, desenvolvidos pela USP; o auxílio alimentar emergencial, fornecido diariamente pelos frades franciscanos no centro de São Paulo; o Salvando Vidas e o União Amazônia Viva, projetos de diversas entidades do terceiro setor, que canalizaram recursos de doações privadas nacionais e internacionais para a melhoria da infraestrutura de atendimento à saúde; a ampliação, pelo poder público estadual e municipal, das unidades de saúde e equipes médicas á disposição da população.
Mas faltou muito:
- coordenação federativa da atuação do poder público e priorização federal da saúde pública, ao invés de guerra político-partidária, negacionismo, curandeirismo, propagação de mentiras e bravatas;
- maior interação entre o controle interno, externo e a administração, para solucionar com maior consistência e segurança situações operacionais complexas e urgentes;
- criação de novas plataformas eletrônicas de contratações, com preços efetivamente praticados para balizamento dos valores aceitáveis;
- criação da Controladoria no âmbito do maior estado brasileiro, São Paulo, e em todas as grandes e médias cidades, ao menos, para melhor controle e maior transparência das ações governamentais.
Portanto, algumas lições que já podem ser extraídas, para a melhoria do desempenho geral do poder público, e dos sistemas de compras públicas em especial, a partir do enfrentamento da epidemia de Covid-19:
- respeito à federação, com coordenação de ações estratégicas e operacionais entre a União, estados e municípios;
- compartilhamento de plataforma eletrônica de preços e pregões, com maior uso da tecnologia;
- priorizar contratações voltadas à perenização da ampliação da capacidade de atendimento do sistema público de saúde;
- aumento do acervo documental oficial disponível na internet, sobre saúde mas também com dados das demais políticas e serviços públicos, nos portais da transparência, em formato aberto e com atualização automática;
- completa digitalização dos processos administrativos, com garantia de transparência, por meio do acompanhamento instantâneo por qualquer interessado, pela internet;
- realizar todo o processo da contratação em um único expediente, desde a licitação até a conclusão da prestação contratada, deixando-o aberto para consulta na internet;
- garantir acesso às perguntas e respostas feitas pelo Serviço de Informações ao Cidadão;
- planejar auditorias de controle interno sem redundância com as realizadas pelo controle externo, para maior sinergia e melhor cobertura amostral da ação fiscalizatória;
- estruturar adequadamente, por lei, e dotar de autonomia técnica e condições operacionais as Controladorias, capazes de acompanhar em tempo real as mais relevantes providências administrativas, prevenindo e evitando situações de graves irregularidades;
- fomento ao controle social, ampliação da transparência e do compliance no setor público.
Somente assim será possível avanço concreto na direção apontada pela nossa Constituição e preconizada por doutrinadores do Direito Público do elevado patamar da homenageada professora Maria Sylvia, que bem representa o que tanto precisamos na atualidade claudicante: clareza quanto aos princípios e valores a serem respeitados, solidez técnica, dedicação ao Direito, melhoria da gestão, exigência de qualidade na prestação do serviço e respeito ao cidadão, compromisso com o interesse público, com a democracia e com as instituições republicanas.
*Gustavo Ungaro é bacharel, mestre e doutor em Direito pela USP, advogado, professor da Universidade Nove de Julho, membro da Comissão de Direitos Humanos da USP, vice-presidente da Comissão Científica do CONACI, foi controlador-geral do município de SP, ouvidor-geral e corregedor-geral do Estado de SP e presidente do CONACI.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.