Por Renata Souza *
Nos desabafos que ouvi em recente visita ao Jacarezinho, favela da Zona Norte do Rio onde uma chacina promovida pela polícia matou 28 pessoas no último dia 6 de maio, meus interlocutores se caracterizaram, de forma recorrente, como “abandonados”, “esquecidos” ou mesmo “invisíveis”. Nascida e criada na Maré, sei bem como tais palavras expressam de fato o sentimento do povo da favela, mas nas lutas aprendi que não representam exatamente a nossa realidade.
Se abandonar é deixar pra lá, entregar à própria sorte, isso não é o que costuma ocorrer com a população da favela. O Estado não abandona, não esquece e nem deixa de mirar a população pobre e preta. Pelo contrário, volta os seus olhos e drones e gira a sua atenção e metralhadoras, recursos e esforços, prioritariamente, para tratá-la como um grave problema de segurança pública. O extermínio da juventude da favela não ocorre por acaso, como um acidente inevitável. Trata-se de “solução” política racista e genocida.
O orçamento estadual deste ano reservou para a segurança pública a maior fatia dos recursos, R$11,9 bilhões, R$3,4 bilhões a mais do que a parte que coube à educação, por exemplo. Esse dinheiro financiou as tropas cujas ações, segundo o ISP, resultaram, entre janeiro e abril deste ano, em 595 mortes. A juventude precarizada, negra e periférica não é abandonada pelo Estado, é, sim, o alvo preferencial de uma política pública planejada para a sua eliminação.
Quando afirma que a chacina do Jacarezinho fez parte de um plano para “libertar” o Rio, o governador Cláudio Castro comemora e reafirma essa necropolítica. Castro não opta por esse discurso à toa. Assim o faz para dialogar com a sua base política, a mesma que elegeu o presidente Bolsonaro, formada por um setor da sociedade bastante contaminado por preconceitos de origem colonial, patriarcal e escravocrata. Essa lógica aparece ainda na declaração do vice-presidente Mourão, ao tentar justificar o massacre: “Era tudo bandido”.
Esse pensamento desumanizante pode explicar, por exemplo, o comportamento dos patrões que demitiram as empregadas domésticas moradoras do Jacarezinho porque elas não conseguiram sair de casa para trabalhar no fatídico dia da chacina.
O dinheiro que nunca falta para a compra de armas e munições usadas na guerra aos pobres escasseia quando a demanda da favela e da periferia é por comida, água potável, esgoto, moradia, assistência social, trabalho, saúde e educação. Nesse sentido, no Jacarezinho, a chacina desencadeou um processo de agravamento da miséria pré-existente, já agravada pelo contexto da pandemia de Covid-19.
Na condição de presidente da Comissão Especial de Enfrentamento à Miséria da Alerj, tenho visitado comunidades da capital e do interior do Rio para conhecer de perto a realidade dos moradores e, sobretudo, para ouvi-los. Desde a instalação dessa Comissão, em março, estive em favelas localizadas na Zona Norte da capital, na Baixada Fluminense e na Região Serrana. O nosso diagnóstico avança para a compreensão de que a miséria não existe, portanto, por abandono, esquecimento ou invisibilização do povo preto pelo Estado. Muito menos pela impossibilidade concreta da fartura para todas e todos. A desigualdade é uma escolha das nossas elites e chacinas são a expressão máxima e cruel da miséria. É possível e urgente mudar essa realidade. Basta vontade política para defender a dignidade humana.
*Renata Souza é deputada estadual (PSOL), doutora em Comunicação e Cultura, presidente da Comissão Especial de Enfrentamento à Miséria e vice-presidente da Comissão de Defesa da Mulher da Alerj.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.