Por Anna Normanton *
No mês de maio se comemora o Dia Internacional contra a LGBTTIfobia. A razão da escolha deste mês é que no dia 17 de maio de 1990 o termo "homossexualismo" foi retirado da lista de classificação estatística internacional de doenças (CID) da OMS. Quanto à transexualidade, apenas em 2019 a OMS a retirou, após 28 anos, da categoria de transtornos mentais.
O preconceito contra as pessoas LGBTTI é fundado nos padrões socioculturais de hetero e cis normatividade e, da mesma forma que a perpetuação da desigualdade e violência contra as mulheres, advém também de um déficit de educação e informação acerca de questões ligadas à orientação sexual e identidade de gênero. Esse problema toma proporções ainda mais perigosas com as tentativas de afastar tais assuntos dos bancos escolares.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece obrigações que os estados devem respeitar e promover, a fim de garantir os direitos humanos de todas as pessoas. O direito à igualdade e não discriminação são princípios fundamentais, consagrados na Carta ONU, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos, dentre outros tratados relacionados à matéria.
Todavia, até o presente momento, não há nenhum tratado de Direitos Humanos que diga respeito especificamente aos direitos das pessoas LGBTTI. A principal razão dessa ausência é que a criação e entrada em vigor dos tratados internacionais de sobre o tema depende da vontade política dos estados e, justamente por conta do forte preconceito, descriminalização e invisibilização que sofrem as pessoas LGBTTI até os dias de hoje, ainda não houve acúmulo de forças em âmbito internacional para a implementação de um tratado específico sobre o assunto.
Nesse sentido, é importante lembrar que outros grupos socialmente marginalizados, como é o caso das mulheres, pessoas negras e pessoas com deficiência, após muitos anos de lutas, felizmente conquistaram tratados internacionais específicos. Por isso, crê-se que este será o mesmo caminho para a comunidade LGBTTI.
Assim, nota-se que os Direitos Humanos das pessoas LGBTTI estão essencialmente ligados à característica contramajoritária dos Direitos Humanos, que se trata da atuação desses direitos como verdadeiros trunfos das minorias contra as maiorias, para se garantir que nenhuma maioria política prive grupos minoritários de seus direitos humanos, subjugando-os.
Em outros termos, os direitos humanos são tão importantes que a decisão sobre os garantir, ou não, não pode ser simplesmente deixada ao arbítrio das maiorias. Sob essa ótica, é importante lembrar que os eles desenvolveram?se no plano internacional para fornecer proteção ao indivíduo nas hipóteses de falha no dever de proteção por parte dos estado.
Porém, diante da ausência de um tratado específico sobre a temática, busca-se garantir os direitos humanos das pessoas LGBTTI a partir de disposições gerais sobre a matéria, que se aplicam a todos os indivíduos, de forma que, obviamente, também se aplicam aos direitos relacionados a orientação sexual e identidade de gênero.
A garantia de igualdade e não discriminação conferida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos se aplica a todas as pessoas, independentemente de gênero e orientação sexual. Não há cláusulas internacionais que permitam a um estado garantir os direitos para alguns indivíduos, mas negá-los a outros com base em sua orientação sexual ou identidade de gênero.
No âmbito internacional, os Princípios de Yogyakarta são um importante marco na interpretação dos Direitos Humanos das pessoas LGBTTI. O documento, que possui natureza de soft law, estabelece diretrizes normativas sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.
Quanto ao âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, apesar da inexistência de um tratado específico sobre a matéria, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem promovido importantes avanços ao reconhecer em sua jurisprudência uma série de direitos da população LGBTTI.
Nessa linha, apesar de ser expresso na Convenção Americana de Direitos Humanos, a Corte IDH determina que a expressão “outra condição social” do art. 1.1 da Convenção, que trata do direito ao gozo de direitos sem discriminação, abrange a orientação sexual e a identidade de gênero.
No Caso Flor Fleire vs. Equador, a Corte entendeu ser inconvencional utilizar a orientação sexual como fator determinante para selecionar membros pertencentes às Forças Armadas.
No caso Atalla Riffo vs. Chile, a Corte IDH definiu que a orientação sexual dos pais da criança não pode ser tomada em conta nas ações de guarda. Ainda, declarou que a Convenção Americana de Direitos Humanos não acolheu um conceito fechado de família, sendo de acordo com os preceitos da Convenção as mais diversas formas de família, independentemente da orientação sexual de seus integrantes.
No precedente firmado pelo Caso Duque vs. Colômbia, a Corte reconheceu a impossibilidade de se negar a concessão de benefício previdenciário por morte em uniões homoafetivas.
Ainda, no Caso Azul Rojas Marín e outra vs. Peru, a Corte fixou entendimento que no caso de violência contra pessoa LGBTTI, a abertura de linhas de investigação sobre comportamento social e/ou sexual da vítima configura ação baseada em estereótipo de gênero, o que viola as normas internacionais de Direitos Humanos.
Além disso, é de extrema importância a Opinião Consultiva nº 24 da Corte Interamericana, que estabeleceu que a igualdade é inseparável da dignidade essencial da pessoa, devendo os estados se absterem de criar ações que produzam situações de discriminação, obrigando-os a a adotar medidas positivas para reverter as situações discriminatórias existentes em suas sociedades.
No documento, a Corte IDH também afirma que “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “expressão de gênero” encontram-se igualmente contempladas no artigo 1º da CADH, quando se menciona a expressão “qualquer outra natureza”, sendo vedadas práticas discriminatórias com base nesses critérios diferenciadores.
O Tribunal também asseverou que o direito à identidade de gênero e orientação sexual guardam profunda relação com conceito de liberdade, autodeterminação e possibilidade de o indivíduo escolher livremente as circunstâncias que dão sentido à sua existência. Portanto, a identidade de gênero é um direito constitutivo, que possui valor instrumental para o exercício de outros direitos.
Por isso, quanto às pessoas trans, a mudança de nome, a adequação da imagem, assim como a alteração de identidade de gênero nos registros e nos documentos de identidade é um direito protegido pelos artigos 18 (Direito ao nome), 13 (Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 7.1 (Direito à liberdade), 11.2 (Direito à vida privada) da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Na opinião consultiva, a Corte também reconheceu a existência legítima das diversas formas de família, de maneira que apesar do artigo 17.2 (Proteção da família) da CADH reconhecer o “direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem família”, tal definição não se baseia restritivamente ao matrimônio, nem a uma única forma de família protegida pela Convenção, a partir de uma interpretação evolutiva do tratado.
Assim, com fundamento no direito a proteção da vida privada e familiar (artigo 11.2), assim como o direito a proteção da família (artigo 17), a Convenção Americana protege e ampara as mais diversas formas de organização familiar. Além disso, o Tribunal reconheceu que devem estar protegidos todos os direitos patrimoniais que derivam do vínculo familiar homoafetivo, sem qualquer discriminação com relação aos casais heterossexuais, em conformidade com direito a igualdade e a não discriminação (artigos 1.1 e 24 da CADH).
Quanto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 2015 o órgão editou Relatório sobre a violência contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersex nas Américas, no qual, entre outras formas de violência, constatou-se que onze Estados americanos ainda criminalizavam relações sexuais consensuais entre adultos do mesmo sexo em privado.
Além disso, a CIDH já entendeu que a negativa de visita íntima a mulher presa, com base em sua orientação sexual, viola o princípio da proporcionalidade.
Em conclusão, o que se nota é que para a garantia e efetivação dos direitos humanos das pessoas LGBTTI deve-se, ao mesmo tempo, promover o engajamento em âmbito nacional e internacional para a criação e promulgação de um tratado internacional específico sobre a temática, bem como utilizar das normas e mecanismos já existentes no ordenamento jurídico doméstico e internacional.
E-mail: anna.normanton@gmail.com
*Anna Normanton é advogada graduada pela PUC-SP, especialista em Direitos Humanos (CLACSO), mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, mestra em Direito Constitucional pela PUC-SP, pesquisadora e professora assistente da Faculdade de Direito da PUC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.