Por Vagner Marques *
Após mais de um ano com as aulas presenciais suspensas por conta da pandemia, chegou o dia do retorno. Com todos os cuidados, as aulas foram retomadas no dia 26 de abril. Descrevo aqui a minha experiência de retornar à escola após um ano com atividades exclusivamente remotas.
Em Ferraz de Vasconcelos, município onde atuo, o retorno prevê a presença de 20% de alunos em cada turma. Todos os espaços da escola foram demarcados e as salas de aula foram preparadas para receber o máximo oito alunos, as demais mesas e cadeiras foram retiradas e o distanciamento entre elas é visível. Todos os professores e profissionais que atuam na escola, além da máscara, utilizam também o face shield, aquele protetor facial.
Assim que chego na escola a minha temperatura é aferida e recebo álcool em gel nas mãos para entrar, alguns passos adiante, me deparo com o tapete sanitizante, as escadas que dão acesso a sala dos professores foram demarcadas com uma parte para subida e outra para descida.
Ao acessar o segundo piso, até a sala dos professores, observo que as salas de aulas parecem ser maiores pelo vazio de mesas e cadeiras. Em todos os corredores há informes de cuidados, e todas as informações possíveis sobre o coronavírus, substituindo os trabalhos dos alunos. Até parece que estamos num hospital e não numa escola.
Na sala dos professores, há recomendações para que não tenhamos aglomerações e o fraternal encontro e café entre os colegas foi suspenso. Os horários de intervalos foram alterados para evitar encontros e a prática docente tornou-se uma experiência solitária.
Não posso deixar de descrever o compromisso da gestão escolar para o cumprimento do melhor e mais seguro retorno aos alunos e segurança dos professores e profissionais da escola. A coordenação pedagógica e direção realizam todos os esforços possíveis para nos atender e assegurar que cada aula seja uma experiência única para os alunos, mesmo que pareça um hospital.
Os professores situados no grupo de risco não retornaram e em casa realizam as atividades remotas. Sinto saudade desses colegas e creio que eles também sentem falta da escola. Os demais compõem a linha de frente do retorno às aulas presenciais em Ferraz de Vasconcelos.
As turmas foram divididas por cores e a cada semana os alunos de uma determinada cor deve frequentar às aulas. Dessa forma se evita as aglomerações. Ao chegar na sala de aula, o meu lugar de trabalho, vejo os poucos alunos que vieram, todos com máscaras escondendo os sorrisos, álcool em gel na bolsa e distantes uns dos outros. Há poucos sorrisos, a alegria foi retirada e o silêncio é atordoador.
Eu queria tanto abraçá-los, fazer festa, atividades em grupos, correr pelos corredores, gritar juntos até perdermos a voz, mas, as máscaras, a número reduzido e o ambiente hospitalar que se tornou a escola nos impede temporariamente de transformar a escola em escola. Mesmo de volta à escola, estou com saudades da escola, aquela escola dos barulhos, dos corredores cheios, da sala dos professores com aroma de café e intervalos com correrias e brincadeiras.
Poucos alunos estão vindo a cada dia. Ainda não sei se por medo, mas como estamos no início, quero acreditar que aos poucos eles vão se sentir mais seguros e retornar.
Entrei em salas com apenas um aluno e em outras com seis; neste cenário entrego o melhor de mim, preparo as aulas para que atendam suas necessidades e quero aprender com cada aluno e aluna que voltou à escola. Portanto, antes do conteúdo, procuro conhecê-los e identificar como tem sido passar pela pandemia, se alguém da família contraiu o vírus ou, se lamentavelmente, perdeu a vida.
Os alunos que com quem conversei, todos, absolutamente todos, têm profunda consciência do que estamos vivendo e estão com medo. Alguns relataram casos na família com sintomas leves, outros, com sintomas graves e lamentavelmente, alguns descreveram perdas de familiares.
Sou historiador e professor de História e procurei utilizar a pandemia do novo coronavírus como instrumento de análise histórica e conteúdo pedagógico. Juntos, identificamos as experiências humanas de outras pandemias, as semelhanças e diferenças com a Covid-19.
O destaque que quero registrar é que a escola, por mais que tenha esforços de todos os atores envolvidos, desde a Secretaria de Educação até a Gestão Escolar não é o mesmo lugar. Ela mudou e essa mudança deve ser analisada em perspectivas diversas. Essa mudança é provisória ou permanente? A escola voltará a ser escola ou, embora receba alunos e alunas, torna-se-á uma espécie de hospital?
Os barulhos, os sons, a correria, as brincadeiras, os encontros, os jogos coletivos, os trabalhos e tarefas em grupos, as festinhas de colegas de turma, o café na sala dos professores e a agitação que marca a escola não faz parte do retorno.
Em contrapartida, temos um ambiente silencioso, fúnebre, triste, vazio, sem cores, movimentos e barulho.
A pandemia nos tirou quase 430 mil vidas e juntamente com elas nos trouxe o medo, nos tirou a paz.
O retorno às aulas presenciais é uma tentativa de retornar a normalidade e embora os esforços sejam consideráveis, há questões urgentes que antecedem tais esforços e devem ser objeto de análise.
Israel celebrou o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras após vacinar mais de 80% da população, já os Estados Unidos vacinou 77,7%, Reino Unido, 79,4%, enquanto o Brasil vacinou 17,5,% da população na primeira dose e apenas 8,8% da segunda dose.
É aqui que devemos repousar a reflexão; as casualidades da lenta vacinação, as consequências econômicas, sociais e, neste caso, pedagógicas do fracasso da política nacional de vacinação contra o novo coronavírus.
Em 14 agosto de 2020, a farmacêutica Pfizer ofereceu ao governo brasileiro 70 milhões de doses de vacina, mas não obteve resposta a respeito do interesse da compra, sem resposta, a farmacêutica fez uma nova oferta em 11 de novembro, e novamente o governo federal e Ministério da Saúde não se posicionaram. Por conta disso, outros países entraram na prioridade e o governo brasileiro perdeu a oportunidade de vacinar 70 milhões de brasileiros.
Já no dia 20 de outubro de 2020, o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello anunciou a compra de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac. No dia seguinte, o presidente Jair Bolsonaro desautorizou a compra. Por que, presidente? Por quê?
Perdemos duas janelas de aquisição de compras de vacinas. Juntas, estamos falando de 116 milhões de dose, em fase única. Metade da população nacional teria sido vacinada, mas o governo federal e o Ministério da Saúde demonstraram que não é objeto de interesse a aquisição e aplicação de vacinas.
Sem vacinas, o retorno a todas as atividades será lento e gradual. Enquanto novas variantes se manifestam, o avanço do vírus ganha novas formas e milhares de vidas são perdidas cotidianamente.
A filósofa Marilena Chauí, no clássico livro Conformismo e Resistência, analisa e problematiza a cultura popular. Seu interesse é identificar que a cultura popular em determinados aspectos reforça e perpetua o conformismo do status quo, mas em contrapartida, também são ambientes de oposição e resistência.
O retorno às aulas apresenta os mesmos paradigmas de conformismo e resistência. Conformismo com um governo que não realizou testes em massa, negligenciou os efeitos da pandemia, apresenta uma postura negacionista, indicou em dois anos quatro ministros da Saúde no momento mais delicado da História do país, perdeu a compra 70 milhões de doses da vacina da Pfizer e não aponta caminhos efetivos para superação a pandemia.
Mas também é resistência. Mesmo com número reduzido de alunos e todos os cuidados necessários, o retorno oportuniza colocar esse debate como pressuposto pedagógico, permite que cada aluno e cada aluna ao voltar para casa, subsidie seus familiares de informações do caos que estamos vivendo, que identifiquem os responsáveis pela extensão da pandemia e construam, juntos com nós professores, possibilidades de análise sobre o tempo presente.
Voltar às aulas é um desafio, traz o medo da contração do vírus, mas possibilita discutir com os alunos que não têm acesso a plataformas pedagógicas, oportuniza pontes, possibilidades de encontros com os nossos colegas de trabalho. E juntos, sempre juntos, podemos criar bolsas de esperança para os dias difíceis e possibilidades para o futuro próximo.
*Vagner Aparecido Marques é professor universitário, historiador, doutor em História Social e mestre em Ciências da Religião, ambos pela PUC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.