Por Aldo Fornazieri *
Bastou Lula livrar-se das amarras jurídicas e readquirir a condição de ser candidato em 2022 que certo oba-oba tomou conta de setores de esquerda, do PT e de vários analistas. É como se vissem apenas um horizonte na frente: as eleições de 2022 e a vitória do Lula. Isto é factível, claro, mas o momento não é de oba-oba. Não se pode antecipar o calendário eleitoral em meio a uma trágica mortandade e de dias terríveis que ainda vêm pela frente. Centralizar o debate em torno de candidaturas e eleições é desrespeitar os vivos e os mortos.
A questão é a seguinte: as oposições não vão adotar uma atitude séria e digna para remover o presidente genocida, que não para de desenvolver uma política de morte? A resposta é: aparentemente não. As oposições, com exceção talvez do PSOL, não querem o impeachment de Bolsonaro. Julgam que é melhor deixá-lo sangrar – caminho seguro para vencer as eleições com Lula. É um jogo arriscado, por dois motivos: 1) a dignidade política e moral recomenda a remoção de Bolsonaro; 2) em política, o acaso, o imprevisto, muitas vezes deita por terra as melhores estratégias. O próprio Bolsonaro, isolado e enfraquecido, poderá cometer desatinos imprevisíveis e jogar o país na turbulência política de alto risco.
A outra tese esposada pelos representantes da esquerda oba-oba sustenta que Lula deve polarizar com Bolsonaro. Este desejo concretiza aquilo que os chamados liberais, a centro-direita e setores da mídia verbalizam: Lula e Bolsonaro polarizam o país, pois um é o polo oposto do outro. Viabilizar esse desejo de setores da esquerda e esta verbalização da centro-direita significa rebaixar o status da liderança de Lula, o significado de sua história e reputação de estadista que ele construiu como presidente da República.
Justamente por ter construído uma reputação de estadista, Lula deveria comportar-se como estadista neste momento de fome e desemprego do povo, de morte, de dor, de medo e de desesperança. Nesta condição, Lula deveria unir forças para construir uma saída para tirar o Brasil do abismo deste momento terrível.
A esquerda oba-oba não pode terceirizar para Lula a responsabilidade de enfrentar Bolsonaro, assim como ficou terceirizado para o STF este dever nesses dois anos de governo nefasto. Lula deve mostrar-se o antípoda de Bolsonaro não pela polarização, mas pelas atitudes perante a gravidade da situação e perante a responsabilidade que se tem que ter para com o país e com o povo. Se Lula é o estadista, Bolsonaro nada tem de estadista. Em seu governo, Lula uniu o povo. Bolsonaro é um arruaceiro político que semeia o ódio, a desavença e o conflito. Um estadista apresenta soluções, um genocida dissemina a morte. Um estadista protege o povo, Bolsonaro desgraça o povo e destrói o Brasil. Um estadista ama e sofre com seu povo, enquanto Bolsonaro odeia a humanidade e sequer ama a si mesmo.
Não há nenhum termo de equivalência entre Lula e Bolsonaro. Não há razão para Lula ficar polarizando com um amante de ditadores, com um adulador de torturadores, com alguém que escarnece dos mortos e debocha da dor daqueles que perderam seus entes queridos. Lula precisa colar-se acima deste lodo moral que envolve Bolsonaro e seu governo. Lula precisa ser a voz da esperança, do conforto, do carinho, do afago deste povo machucado, ferido e desesperançado.
Lula é totalmente diferente de Bolsonaro não pela querela, pelo bate-boca, pela arruaça verbal. Lula é diferente e incomparável com Bolsonaro pela evidência do que cada um é, por aquilo que Lula fez como presidente e por Bolsonaro ser um antipresidente. A diferença política e moral entre os dois é abissal. Por ser uma diferença evidente, não cabe a Lula verbalizá-la, pois se ele recorre à verbalização, deixa de ser evidente. A diferença se evidencia pelos atos, pelos propósitos, pela conduta moral e política, pela responsabilidade para com o país e o povo, pelos bons exemplos.
Um líder que é estadista dispõe de estado-maior, de capitães. São estes que devem fazer o embate, colocar-se na linha de frente, comandar os ataques de infantaria. Infelizmente, hoje, muitos membros do estado-maior, parlamentares e dirigentes dos partidos se colocaram na retaguarda da militância.
Vivemos num tempo tão cruel que tiraram dos vivos o direito de se despedirem dos seus queridos mortos. Os mortos são enterrados nas sombras da noite como se fossem corpos amaldiçoados que devem ser desvanecidos nas trevas. Não há despedidas. Só resta a dor, a dilaceração, o abismo do vazio.
Ninguém lidera, não há caminho, não há luz, não há esperança. Impera a incoerência, a desorganização, a desordem. Prefeitos e governadores se conduzem pelo aleatório, pelo extravio, pela anomia. Uns temem perder votos, outros cedem aos comerciantes. As medidas, na sua maior parte, são frouxas, incoerentes e ineficazes. Tudo está mal posto, mal resolvido, não resolvido. O Brasil foi tomado de assalto pelo mal estar.
Muitos santos padres, pastores e bispos das igrejas se acanalharam. Preferem ver o fiel correr risco de vida do que perder a oferenda, o dízimo. Que dizer de Edir Macedo, do pastor Hernandes e da bispa Sônia, que semearam a mentira, a desinformação e o caos e foram se vacinar nos Estados Unidos? Até quando estes apóstolos da mentira podem continuar enganando sem serem confrontados e desmascarados? A liberdade religiosa não pode ser entendida como a liberdade de enganação, de charlatanismo. A liberdade religiosa não pode confundir-se com a liberdade de colocar em risco a saúde pública.
É preciso que os líderes de bom senso se unam, ao menos neste momento, para tirar o país das mãos dos malvados e dos canalhas. Se nada for feito agora, o risco é de que a maldade e a crueldade provoquem danos irreparáveis e duradouros no caráter, no ethos da sociedade brasileira. É preciso dar um basta a esta situação. Este é o dever e a responsabilidade dos líderes. Lula pode e deve desempenhar um papel decisivo na construção coletiva e plural deste basta.
*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.