O falso herói: Tiradentes e a construção social da história oficial – Por Vagner Marques

Por que, quando e por quem ele foi mitificado como herói? Isso é uma história longa, mas faço um brevemente resumo.

Imagem: YouTube (Reprodução)
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**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

Por Vagner Marques *

Em nossa sociedade, percebemos cada vez mais a busca pelo mito do herói. A história oficial é farta deles, temos muitos nos livros didáticos, nos feriados e nos monumentos.

Joaquim José da Sila Xavier, o Tiradentes, é um grande exemplo da construção mítica oficial. Hoje se celebra sua morte na condição de herói nacional. Antes de tudo, não estou aqui para desanimar ninguém que queira nutrir afetos aos “heróis”, apenas me ocupo da condição de historiador, professor e pesquisador para questionar, nos fatos históricos, a construção do mito e indicar os enormes problemas envoltos na figura de Tiradentes como herói nacional.

Sim, Tiradentes foi preso, julgado e condenado à morte, o que ocorreu em 21 de abril de 1789, isso é fato! Porém, a ideia de herói e de quem lutou pela libertação do país é fake!

Tiradentes foi preso porque participava de um esquema de desvio de ouro da coroa, o que chamamos hoje de corrupção, uma prática muito comum entre os ricos e poderosos. Isso mesmo, ele estava atolado em um esquema de desvio de ouro.

Devemos lembrar que até a Independência (outro fake, mas comento em outro momento) o Brasil era colônia de Portugal. Aqui as aulas de Brasil colônia fazem tanta falta. Na condição de colônia, havia o Pacto Colonial, uma determinação da dependência da colônia (Brasil) sobre a metrópole (Portugal).

O ouro no Brasil foi encontrado apenas no final do século XVII, pelos bandeirantes paulistas, por isso ocorreu a Guerra dos Emboabas (1708-1709), um conflito entre os descobridores (bandeirantes paulistas) e os estrangeiros (portugueses) pelo monopólio de extração do ouro.

No final das contas, Portugal que estava ruim das pernas e com a economia em colapso conseguiu o monopólio da extração e criou a casas de fundição para fiscalizar e controlar a produção aurífera.

Com a grande quantidade de ouro nas Minas Gerais, a população escrava aumentou expressivamente, a ideia de sociedade mudou, o centro das elites política e econômica migrou do Nordeste (açucareiro) para o Sudeste, e a sociedade colonial cresceu em números significativos.

A coroa portuguesa criou diversos impostos, entre eles o Quinto. Os mineradores eram obrigados a destinar 20% de ouro arrecadado para a coroa. Havia também a Capitação, imposto cobrado sobre escravos e pessoas livres que realizavam trabalhos por conta própria, assim como a temida Derrama, que seria o confisco de objetos pessoais na possibilidade de não se arrecadar o volume de ouro condicionado pela Coroa.

E é aqui que entra em cena Tiradentes e seu grupo político.

O problema é que muitas pessoas passaram a explorar o ouro e muitas outras a sonegar os impostos, o que habitualmente os ricos fazem até hoje. Por essas duas razões, Portugal passa a ter uma grande queda na arrecadação anual dos impostos sobre o ouro. Muita gente explorando e muita gente roubando, INCLUSIVE TIRADENTES!

Preocupado com a queda na arrecadação, a coroa portuguesa passa a adotar medidas fiscais mais rígidas, ao passo que inicia processos de investigação sobre a produção e tributação do ouro nas Minas Gerais, a nossa primeira "Lava Jato", semelhante até nos esquemas de condução do processo jurídico.

Com muita gente explorando e muita gente roubando, o ouro diminuiu, mas a coroa buscava manter a arrecadação, e para isso passa a investigar os sonegadores, dos quais Tiradentes faz parte, e a Derrama torna-se uma opção. Caso a arrecadação anual com os tributos sobre as minas fosse menor que cem arrobas de ouro, seria autorizado o confisco de bens pessoais de ouro e prata até atingir o que faltava para as cem arrobas.

Em paralelo, não podemos deixar de destacar o papel de Marquês de Pombal, embaixador português com grande ingerência política no Brasil. O cara era mão de ferro mesmo. Suas medidas protecionistas buscavam afastar o desempenho dos ingleses nos negócios coloniais e defender os interesses da coroa portuguesa. Desse modo, as aleites coloniais passam a sofrer pressão de um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como Reformas Pombalina.

E é exatamente aqui que entramos no X da questão! Muita gente roubando, muita gente explorando, aumento das medidas de fiscalização promovidas por Marquês de Pombal e o risco eminente da Derrama, fez com que a elite mineradora se organizasse em um movimento separatista, apenas das Minas Gerais, conhecido por Inconfidência.

Eu disse elite mineradora, sim. Isso mesmo! Ricos e poderosos que tinham seus interesses em conflito iniciam um movimento de separação das Minas, somente isso, mas por favor, sem choro por decepção heroica. 

Não é um projeto de independência do Brasil, mas sim de Minas Gerais. Não houve nenhuma intenção de acabar com a escravidão, tampouco se desenvolveu um projeto de sociedade.

O que estava em jogo eram os interesses da elite mineradora, entre eles, os do próprio Tiradentes, que não era o cara mais poderoso entre os poderosos, ao contrário, só rodou porque era o menos poderoso e o menos rico entre os ricos.

Não nos esqueçamos do papel do cagueta, ou, em tempos modernos, de quem fez a delação premiada. Joaquim Silvério dos Reis, um dos membros do movimento separatista que rompeu no meio do caminho, mas que tinha um acúmulo de dívidas de impostos, fez um acordo e caguetou geral. Com ele, iniciamos o que chamamos hoje de Delação Premiada.

Ele trocou a dívida pela caguetagem, se deu bem e colocou Tiradentes na forca.

Agora, há outra questão, do próprio Tiradentes em si. Ele conspirou contra a coroa, fez parte de um movimento de sonegadores, mas, sua posição de alferes e comandante do destacamento dos Dragões lhe conferia o domínio sobre o território das Minas Gerais e nada entrava ou saia das Minas sem seu consentimento, inclusive muito ouro desviado.

Quando o conde de Barbacena anunciou a Derrama, o desespero da elite política e econômica que desviava e corrompia foi imediato, suas ideias conspiradoras ganharam forma e o projeto separatista das Minas Gerais foi iniciado, até que o cagueta entra em cena, dá nome aos bois e geral é preso. Mas o poder dessa galera é muito grande, por isso, o menos rico e poderoso sofre a pena de morte. Esse foi o Tiradentes.

Ele não lutou pela independência do Brasil, mas sim, descontente com a cobrança de impostos e pelos desvios que ele e seus parceiros faziam, pensaram em separar as Minas Gerais.

Ele não lutou em defesa de um projeto de país, tampouco problematizou a escravidão, mesmo seu movimento tendo sido inspirado pelos iluministas franceses que debatiam o fim da escravidão nas colônias.

A questão final. Por que, quando e por quem ele foi mitificado como herói? Isso é uma história longa, mas faço um brevemente resumo. Tiradentes foi morto em 1789 e esquecido, literalmente. Sua morte foi por traição, roubo a coroa e por fazer parte do esquema de corrupção.

Somente cem anos depois, em 1889, lá no contexto da República, que foi um golpe danado, (mas que em outro momento discutirei isso) os republicanos precisavam de figuras que “lutaram” contra o Império. Daí o resgate da figura de Tiradentes e a construção mítica em torno de si.

Aquela imagem de um homem esquartejado, semelhante a Jesus Cristo, é naturalmente uma construção histórica, uma produção artística de 1893. Quase cem anos depois de sua morte, foi feito pelo artista Pedro Américo, o mesmo que pintou Dom Pedro em um cavalo que nunca subiu, com uma espada que não tinha e com roupas que não vestiu no sete de setembro de 1822.

Antes que tenham raiva do artista, não se esqueçam de que ele foi contratado para produzir um trabalho e não descrever a “verdade”, se é que isso seria possível.

Tiradentes foi morto no período colonial (1789), esquecido durante todo o Império (1822-1831) e resgatado na República (1889). Hoje, tido como herói pela história oficial republicana, ganha um feriado próprio e nós precisamos mais que perder o feriado, perder o afeto aos falsos heróis.

Espero muito não ter decepcionado ninguém que ainda procura na história oficial referências míticas, mas, fontes não faltam e fakes temos de monte.

Apenas apresentei que é fato seu suborno, seu esquema, suas maracutaias, sua participação em um grupo de sonegadores, ricos e poderosos, que desviavam dinheiro e não pagavam impostos. Como diz o poeta “tão Brasil”.

Excelente final de feriado.

Instagram: profvagnermarques

*Vagner Aparecido Marques é professor universitário, historiador, doutor em História Social e mestre em Ciências da Religião, ambos pela PUC-SP.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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