Por Deivi Kuhn *
Sem dúvida é muito difícil imaginar uma vida completamente rastreada, com cada movimento registrado e estudado. Porém, tenho uma má notícia para o leitor. Você está utilizando nesse exato momento um equipamento ainda pior que a tornozeleira eletrônica: o telefone celular. Irei compartilhar com vocês a partir de hoje como somos monitorados, qual uso as empresas e governos fazem com esses dados e quais ações podemos tomar para proteger a nossa privacidade.
Para evitar que os suspeitos de crimes fujam da Justiça, o Brasil regulamentou em 2010 o uso de tornozeleiras eletrônicas, dispositivos que permitem mapear completamente a movimentação através do serviço de GPS e transmissão de dados via operadoras de telefonia. Nossos telefones, além de utilizar o mesmo mecanismo, possuem métodos ainda mais eficientes para nos rastrear.
Para entendermos melhor como esses dados poderiam ser utilizados, proponho imaginarmos um futuro, nem tão distópico assim, em que o todo o povo é completamente estudado e analisado, ao ponto de predizer seus passos futuros. Imagine que, além disso, as crianças recebam apenas informações direcionadas, determinando a maneira como elas pensam.
Nesse caso, temos uma família composta pelo casal Mário e Helena, e por seu filho Pedro, de 7 anos, que possui uma doença grave, que necessita utilizar um remédio de alto custo. A empresa X produz o remédio, tendo como concorrente a empresa Y, preferida tanto por seu preço como pelo seu sabor. A empresa X é associada de uma grande corporação que possui acesso a dados como localização, fotos e vídeos da família. Ela aplica uma estratégia de utilizar propaganda direcionada sempre que eles navegam pela internet para associar o remédio X às pessoas saudáveis. Sabendo que um dos motivos de dificuldade de venda é o sabor, utiliza seu algoritmo para verificar o momento em Pedro esteja assistindo desenhos animados, programando na sua lista automática vídeos que associam o remédio a uma criança feliz. A família vai visitar um parente, coloca a localização destino no seu aplicativo de trânsito e os algoritmos de publicidade, sabendo que eles realizaram pela manhã uma busca por preços do remédio X e Y, coloca um anúncio oferecendo um pequeno desconto para o remédio X e indica uma farmácia no trajeto que possui exclusividade para esse remédio. A empresa acaba tendo sucesso na estratégia, levando à compra do remédio mais caro e cujo sabor Pedro não gosta.
Esse futuro distópico está mais próximo do que parece. Hoje somos completamente monitorados não só por Estados, mas também por grandes corporações. O celular atualmente é um instrumento de comunicação indispensável para maior parte da população, mas ao mesmo tempo que facilita nossa vida diária, ele também se transformou na tornozeleira eletrônica mais eficiente já existente.
Cada telefone envia um grande conjunto de informações sobre nossa vida privada, hábitos e atividades sem que possamos verificar com assertividade que parte dela é devassada pelos aplicativos e sistemas que utilizamos. Precisamos compreender como essa armadilha que nos aprisiona funciona.
Para uma análise completa do problema, vamos verificar os mecanismos de localização utilizados, as estratégias comerciais das empresas líderes, com que finalidade esses dados são utilizados, como diferentes governos nos monitoram e o que podemos fazer para nos proteger.
Cada telefone possui atualmente um mecanismo de localização, o qual costumamos a chamar, incorretamente, de GPS. Esse sistema utiliza sinais de pelo menos três satélites, chamado trilateração, que permite a localização de um ponto. Esse mecanismo de localização pode ser realizado com equipamentos dos Estados Unidos (GPS), russo (Glonass), europeu (Galileo) e em um futuro próximo da China (BeiDou). A denominação correta desse conjunto de satélites é Global Navigation Satellite System, GNSS.
Esse mesmo sistema de trilateração é utilizado pelas operadoras de telefonia para, a partir de suas antenas, determinar a localização dos telefones. Elas também registram, armazenam e utilizam esses dados.
Muitos pensam que, ao se desligar o sistema de localização dos telefones e retirar o chip das operadoras, estamos protegidos. Porém, as empresas conseguiram uma forma ainda mais eficiente de nos localizar. Utilizando o sinal de Wi-Fi, que é completamente aberto (promíscuo em informatiquês), foi associado cada equipamento, que possui um endereço único, com a sua localização. Ou seja, basta estarmos com o Wi-Fi habilitado, mesmo sem conectar em nenhuma rede, para que o sistema recolha os sinais dos roteadores sem fio ao seu alcance e saibam nossa localização.
As empresas que nos fornecem infraestrutura e softwares solicitam autorização via termos de serviço ou contratos para que nossos dados possam ser utilizados e compartilhados para diferentes fins, inclusive nos estudar. Não possuímos o cuidado de ler com atenção a autorização que damos a essas corporações.
A situação se torna ainda mais crítica ao verificarmos que não possuímos alternativas, como negar os termos de uso, já que estamos completamente aprisionados tecnologicamente a esses fornecedores. Além disso, nossa atual legislação não nos protege. Vamos aprofundar esses aspectos na próxima semana.
*Deivi Kuhn é analista de Sistema, ativista por um mundo com conhecimento e tecnologias livres e compartilhadas.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.