Por Emilly Firmino e Tamyres Lima *
A madrugada do dia 1º de abril de 1964 marcou o início do golpe militar sob a falsa narrativa de defender o Brasil da “ameaça comunista”. Hoje, além de exigir a reparação histórica da crueldade dos anos de ditadura, também é urgente identificar semelhanças e influências do passado, considerando a profunda relação entre as Forças Armadas e o atual presidente do Brasil.
Para analisar essa relação, que se expressa em episódios como a troca ministerial envolvendo as Forças Armadas no último 30 de março e as comemorações do golpe por membros do governo ontem, em 31 de março, é preciso recapitular como chegamos a um golpe militar que mergulhou o Brasil em uma sangrenta ditadura entre 1964 e 1985.
No início de 1960, o mundo vivia o auge da Guerra Fria, marcado pela polarização e disputa da hegemonia de dois projetos antagônicos de sociedade – socialismo e capitalismo – representados, respectivamente, pela União Soviética e pelos EUA. Na América Latina, a vitória da Revolução Cubana (1959) fez com que os EUA voltassem os olhos para os territórios vizinhos, fazendo investimento financeiro e intelectual para barrar o avanço das ideias socialistas.
Aqui, o presidente João Goulart (1961-64) atendia exigências dos movimentos populares com a construção de uma reforma estrutural de bases que incluía educação, sistema político, tributário, reforma urbana e agrária. Descontentes com as reformas, as principais redes de comunicação, empresários e setores conservadores construíram o cenário perfeito para o golpe. Com esse apoio, as Forças Armadas atuaram para depor o presidente, que optou por não resistir para “evitar o derramamento de sangue”.
Defendendo a violência como única forma de restaurar a “democracia”, as primeiras ações dos militares foram de repressão aos movimentos populares, como o incêndio na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no dia 1° de abril. Durante a ditadura foram publicados vários atos institucionais, objetivando dificultar a resistência à ditadura. O mais duro deles, o AI-5 (1968-75), permitiu ao presidente decretar recesso do Congresso Nacional, intervir nos estados e municípios, confiscar bens de cidadãos e suspender o direito ao habeas corpus. Ele intensificou perseguições, prisões e desaparecimentos de milhares de civis e, inclusive, de militares que se opunham ao regime.
Sob uma “abertura lenta, gradual e segura”, em 1979 foi promulgada a Lei da Anistia, que “perdoou” os crimes dos presos políticos e permitiu o retorno dos exilados. Entretanto, ela institucionalizou a ideia de que as ações de repressão dos militares eram equivalentes às ações de resistência à ditadura. Assim, anistiava os crimes de lesa-humanidade cometidos pelos militares, deixando aberta uma dívida de reparação que influencia de forma concreta e subjetiva até hoje.
Anos depois, iniciamos as eleições de 2018 com a memória do discurso de Bolsonaro durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Naquele 17 de abril, o atual presidente, então deputado, argumentou exaltando o Golpe de 64, reivindicou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (notório torturador) e pregou a defesa do conservadorismo, do anticomunismo e do antipetismo.
Capitão reformado do Exército, ainda enquanto parlamentar pelo Partido Social Cristão (PSC), Bolsonaro voltou às frentes militares em busca de apoio para sua candidatura à Presidência, em 2018. Seu governo, além de ter como vice o general Hamilton Mourão (PRTB), deu às Forças Armadas um espaço inédito, colocando generais em postos-chaves para as decisões políticas do país.
Segundo mapeamento do jornal Folha de S. Paulo, até julho de 2020, Bolsonaro aumentou em 33% a presença de militares da ativa em seu governo. Até o fim do mesmo ano, marcado pela pandemia e pelo aprofundamento das crises, as Forças Armadas tiveram ainda mais participação na administração federal, superando o contingente do período da Ditadura Militar.
A presença de militares em diversos setores do governo federal recolocou em debate o papel das Forças Armadas numa sociedade democrática. E é preciso considerar que essa participação é parte de uma decisão política da instituição a que eles estão subordinados. Também, nestes dois anos, Bolsonaro fez entregas concretas aos seus aliados militares: ampliou o acesso à armamento, preservou o Ministério da Defesa de grandes cortes orçamentários e poupou o grupo da reforma da previdência.
Logo, o discurso de Bolsonaro, que alimenta a memória do Golpe de 1964 como uma 'revolução', é também das Forças Armadas. Isso se expressa em episódios como o do vice-presidente Mourão defendendo intervenção militar, a defesa do Executivo em prosseguir com comemorações do Golpe de 64, o jurista Ives Gandra defendendo intervenção militar “constitucional” e o ministro Paulo Guedes ameaçando a imposição de novo AI-5.
Esses discursos mostram o quanto a participação de membros das Forças Armadas em um governo civil pode imprimir uma lógica antidemocrática à gestão, sem que haja necessidade de um golpe direto. E que, apesar de ter encontrado legitimidade em Bolsonaro, esse fenômeno é a expressão de um grupo maior, que pode ser chamado de “Partido Militar”. Trata-se da agudização e o estímulo de uma prática autoritária e militarizada de longa data, que já atingia a periferia e os territórios indígenas, e que hoje se amplia com o aval do governo federal.
Da mesma forma que a participação política dos militares avança, percebe-se que, em paralelo ao crescimento da rejeição ao governo Bolsonaro, também muda o olhar da sociedade para os militares. É quebrada a visão cristalizada deles enquanto indivíduos incorruptíveis e administradores capazes de manter a ordem, o progresso e os valores morais do Brasil.
Na lógica do “quem aparece é lembrado”, identifica-se também o crescimento do interesse dos meios de comunicação pelas pautas militares. Hoje, para cobrir os assuntos do governo é preciso ter compreensão sobre o posicionamento das Forças Armadas. Ao fuçar esses espaços, a mídia vem encontrando casos escondidos de corrupção, tráfico de drogas, abusos e trabalho escravo em unidades militares.
É preciso incidir sobre essas contradições. A trágica intervenção do governo durante a pandemia coloca em xeque a capacidade e a integridade dos militares. Com isso, a crise de Saúde pode significar a possibilidade de uma reforma nas questões de Defesa e de desconstruir a mentirosa narrativa que os militares constroem sobre si.
As Forças Armadas sabiam a profundidade dos problemas da pandemia e como lidar minimamente com ela, mas escolheram adotar a política de morte de Bolsonaro. O maior exemplo disso é a caótica condução do Ministério da Saúde, que passou por várias mãos e só encontrou certa estabilidade na figura do general Eduardo Pazuello, que era extremamente submisso a Bolsonaro.
Outra verdade é que, em meio à atual crise, com desemprego, fome, cortes orçamentários na Saúde e na Educação, além da retirada do auxílio emergencial, a presença dos militares no governo não apontou enxugamento de gastos. Ao contrário, houve aumento de despesas. Da mesma forma, as Forças Armadas têm sido omissas com os processos de privatizações, entregando as maiores fontes de riqueza nacional e contribuindo para a quebra da soberania brasileira. O que se vê é a prioridade na manutenção de privilégios.
Assim, as Forças Armadas, que mataram e torturaram durante a Ditadura Militar de 1964, agora contribuem e têm responsabilidade na péssima gestão do país, que já resultou na morte de mais de 315 mil brasileiros. Para nós, é dever estarmos “atentos e fortes” para derrotar Bolsonaro, vencer a pandemia e não deixar margem para que essa parte da História seja contada sob uma ótica revisionista e mentirosa e muito menos que seja colocada em possibilidade de repetição.
*Emilly Firmino e Tamyres Lima são da Coordenação Nacional do Levante Popular da Juventude
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.