Por Aldo Fornazieri *
O bolsonarismo introduziu um ingrediente na política brasileira que vem sendo terrivelmente negligenciado pela oposição, polos órgãos de investigação, pelo Judiciário, pela grande mídia e pela mídia de esquerda. Trata-se da ameaça de morte como método sistemático de intimidação e de propaganda.
É certo que não se pode classificar o atual governo como fascista. Mas é inegável que Bolsonaro, os representantes de extrema-direita que estão em seu governo e os militantes bolsonaristas são fascistas. Portanto, o bolsonarismo precisa ser tratado como um movimento totalitário.
O oposicionismo pífio e burocrático das esquerdas, a negligência dos poderes públicos e o pouco caso da imprensa, incluindo a imprensa de esquerda, que se limita apenas a informar as ameaças, são condutas que instituíram um sistema de omissões ante as sistemáticas ameaças de morte que, praticamente, contribuíram para a naturalização dessa conduta dos bolsonaristas, neste momento político.
Lula, João Doria, Edinho Silva (prefeito de Araraquara), a médica Ludhmila Hajjar, Patrícia Campos Mello e tantos outros jornalistas, vereadoras do PSOL e outros políticos e ativistas já foram ameaçados de morte, o que comprova que a ameaça de morte é uma ação metódica dos bolsonaristas e faz parte de sua propaganda e intimidação. As ameaças de morte não estão tendo uma oposição contundente, a exigência de seu fim, uma denúncia sistemática de que se trata de um método político, uma qualificação clara de terrorismo e a manifestação de inaceitabilidade dessa conduta. É esta falta de enfrentamento que vem naturalizando a ameaça de morte como prática efetiva da política brasileira. Imaginem se os militantes do PSOL, do PT ou do PCdoB andassem por aí proferindo ameaças de morte. O mundo desabaria sobre eles e os partidos seriam ameaçados de serem postos na ilegalidade.
A História mostra que um dos aspectos que proporcionou a vitória do nazismo e do fascismo foi a covardia e a negligência dos democratas, ou porque se intimidavam, ou porque faziam pouco caso quando estes movimentos ainda não estavam no poder.
Hannah Arendt, em As Origens do Totalitarismo, argumenta que, sob a vigência do governo constitucional e da liberdade de opinião, o terrorismo é usado até certo ponto, pois os movimentos totalitários precisam manter certas aparências. Mas em países totalitários, “a propaganda e o terror parecem ser duas faces da mesma moeda”. Antes da tomada do poder, os totalitários usam de ameaças diretas, atentados contra indivíduos, desqualificações, imputações odiosas, tudo isso contra inimigos supostamente culpados ou mesmo pessoas apolíticas, como foi o caso da médica Ludhmila. No poder, os movimentos totalitários usam o terror sistemático não só contra indivíduos e partidos inimigos, mas também contra grupos populacionais inteiros.
Arendt nota que o apelo à violência como propaganda totalitária ocorre mais nos momentos iniciais dos movimentos totalitários e que esta tática visa tanto a assustar o povo, quanto intimidar os adversários.
Os movimentos totalitários usam ainda dois outros expedientes em sua propaganda, que são claramente identificáveis no bolsonarismo: 1) a mentira sistemática “para dar realidade às suas doutrinas ideológicas”; 2) a utilização recorrente de argumentos que são inverificáveis no presente, seja porque são fórmulas vazias de qualquer conteúdo, seja parque pretendem expressar verdades que só ocorrerão no futuro. É por isso que um número ainda considerável de pessoas acredita que Bolsonaro e seus seguidores são expressões autênticas dos interesses do país.
Embora o bolsonarismo esteja no governo, o movimento bolsonarista controla apenas alguns bolsões na estrutura do poder, como o Itamaraty, o Ministério do Meio Ambiente, os cargos de assessoria direta do presidente Bolsonaro e outros cargos espalhados na estrutura do governo. Além das ameaças de morte como política terrorista de intimidação e de disseminação do medo, existem outras evidentes associações, seja com o nazifascismo, seja com o terrorismo supremacista branco norte-americano.
Os casos são notórios: o ex-secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, proferiu um discurso semelhante ao do chefe da propaganda nazista Joseph Goebbels. Na semana passada, o ministro Ernesto Araújo fez menção à sigla símbolo da República de Roma antiga, SPQR (Senatus Populus Que Romanus), não porque seja devoto das liberdades e das virtudes romanas, mas porque Mussolini tentou se apropriar indevidamente deste símbolo e porque alguns supremacistas brancos também o usam indevidamente. De quebra, o assessor de Bolsonaro, Felipe Martins, que acompanhava o ministro, fez com as mãos o gesto supremacista “white power” em pleno Senado Federal, diante de todos os senadores, numa atitude não só condenável, mas inaceitável.
Ora, quem são os supremacistas brancos nos Estados Unidos, aos quais o bolsonarismo adere? Constituem os principais grupos de terrorismo doméstico. Tentaram promover um golpe de Estado invadindo o Capitólio, provocando mortes. Lá eles tentaram se apossar do Capitólio (Câmara dos Representantes e Senado) pelo terrorismo e pela violência. Aqui, Ernesto Araújo e Felipe Martins tentaram ocupar o Senado simbolicamente, com essas referências ao supremacismo terrorista. O próprio FBI identifica nos supremacistas brancos o principal risco de terrorismo doméstico nos Estados Unidos. Por isso, aqui no Brasil, as instituições do Estado, a imprensa e a oposição não podem negligenciar os riscos que o bolsonarismo militante representa, pois além de ameaçar recorrer à violência metodicamente, amanhã poderá lançar mão dessa violência com atos terroristas.
O próprio Bolsonaro tem um passado que o liga ao terrorismo. Foi expulso do Exército por planejar atos terroristas. Sempre defendeu a tortura e elogiou ditadores que praticavam terrorismo de Estado. Defendeu massacre de índios e fuzilamento de opositores. A sua política para pandemia é uma política orientada para a morte. Manifesta sistematicamente desprezo pelos que morreram e zombarias e indiferença para com as dores de seus familiares.
Quanto mais enfraquecido, isolado e desmoralizado o bolsonarismo se sentir, mais tende a lançar mão do apelo à violência. A democracia não pode aceitar a ameaça terrorista como método normal de ação política. A oposição tem o dever de qualificar corretamente esse recurso, de denunciá-lo incansavelmente e de exigir das autoridades medidas exemplares para pôr um fim a essas práticas. Não basta apenas formalizar queixas-crime contra as ameaças. O problema é de ordem criminal, mas acima de tudo de ordem política. Envolve a salvaguarda da democracia e do Estado de Direito. Não se pode nem tolerar e nem aceitar a política de ameaça de morte.
*Aldo Fornazieri é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.