Eu quero que meu amanhã seja um hoje bem melhor. Salve o Império do Samba!

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia celebra os 74 anos do ‘Menino de 47’, nosso querido Império Serrano, querendo liberdade, esperança e vacinas.

Foto: Estevan Mazzuia
Escrito en DEBATES el

23 de março de 1947. Reunidos na casa de Dona Eulália de Oliveira Nascimento, a Tia Eulália, no Morro da Serrinha, Sebastião Molequinho, Elói Antero Dias, Mano Décio da Viola, Silas de Oliveira, Aniceto Menezes e Antônio dos Santos (o Mestre Fuleiro), entre outros, insatisfeitos com os rumos que tomava o Prazer da Serrinha, escola da comunidade, fundaram o Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano. O nome, sugerido por Molequinho, foi aceito por unanimidade. As cores azul e amarelo ouro não foram aprovadas. Preferiu-se o branco da paz, e o verde da esperança, sugeridos por Antenor Almeida dos Santos. Nascia, assim, o Menino de 47, destinado a fazer frente a Portela e Mangueira e compor, com o Salgueiro, o “grupo das quatro grandes”.

A escola disse a que veio logo em seu primeiro desfile: com “Homenagem a Castro Alves”, o Império interrompeu a série de sete títulos consecutivos da Portela, marca até hoje inigualada. De quebra, abriu caminho para o tetracampeonato, consolidado nos anos de 1949, 1950 e 1951. Em 1955 e 1956, veio o bicampeonato. Novos títulos vieram em 1960, 1972 e, em 1982, com o inesquecível “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”.

Ao longo de sua gloriosa história, a agremiação de Madureira destacou-se pelas inovações nos trajes e no som da bateria, marcado pelos agogôs, antes ouvido apenas nos candomblés. Foi a primeira escola a se organizar em alas, e a primeira a apresentar uma destaque: Olegária dos Anjos, falecida em 2012, aos 79 anos.

Em depoimento exclusivo para esta coluna, a jornalista Rachel Valença, uma das mais renomadas pesquisadoras do carnaval, imperiana “na alegria e na dor” e autora de “Serra, Serrinha, Serrano – o império do samba” (Ed. Record, 2017, 2ª ed.), escrito em parceria com Suetônio Valença, afirmou que “o Império Serrano, mais que qualquer outra escola de samba, é um espaço de construção e preservação de identidades comunitárias fragmentadas pela brutalidade da diáspora negreira. Aqui se preserva, há 74 anos, a forma de viver em comunidade, buscando com alegria e determinação nosso lugar na sociedade. Seus fundadores, lideranças no trabalho no porto do Rio de Janeiro, conheciam a importância do associativismo, da convivência como forma de sobrevivência. A eles devemos esse maravilhoso lugar de encontro, de debates, de festas, de alegria, de samba, de elegância, de beleza, enfim. A enorme beleza do que é humano!”.

Rachel acrescenta: “pertencer ao Império Serrano há quase 50 anos deu um sentido diferente e muito lindo à minha vida. Abençoado o dia em que pela primeira vez pisei aquele terreiro sagrado.”

Tive a honra de pisar naquele terreiro em duas oportunidades e comprovei cada palavra da mestra Rachel. A primeira, na escolha do samba que conduziu o desfile de 2006, cujo refrão assertava que “imperiano de fé não cansa, confia na lança do santo guerreiro”. Até hoje, essa noite é uma das mais marcantes aos imperianos, que ainda se recordam do samba derrotado na final, a despeito de o samba escolhido ser antológico.

A outra oportunidade, mais recente, foi em 2018, cerca de um mês após o falecimento de Dona Ivone Lara, em uma roda de samba em sua homenagem. Fui recebido com imerecidas honras, e apresentado a cada um dos imperianos (incluindo Dona Rachel). Emocionado, caí nos braços de um dos filhos de Dona Ivone, e desabei em lágrimas. Quem é do métier, sabe o que é a emoção que um Império Serrano é capaz de provocar.

Mais do que tudo, o Império Serrano é polo de resistência cultural. Se sofre por não ter se entregado ao comando de bicheiros, destino comum às coirmãs a partir dos anos 80, e nos últimos anos aparece ocasionalmente no grupo principal, mantém a essência que marcou suas origens, e segue orgulhando os corações esmeraldinos. Na alegria e na tristeza.

Entre tantos carnavais marcantes e sambas antológicos (Aquarela Brasileira, de 1964; Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio, de 1965; Heróis da Liberdade, de 1969; As Lendas das Sereias, Rainhas do Mar, de 1976; Mãe Baiana Mãe, de 1983; Verás Que um Filho Teu não Foge à Luta, de 1996; entre muitos outros), resolvi voltar ao carnaval de 1986, já mencionado nesta coluna, de maneira superficial, por acreditar que é um dos enredos mais políticos da escola, e ainda bastante atual, infelizmente.

Desenvolvido por Renato Lage e Lilian Rabelo, então casados, o enredo “Eu Quero” levou à avenida o grito do povo por desejos reprimidos durante os 21 anos de ditadura militar. Era chegada a hora de o povo pedir preservação do meio ambiente, educação, trabalho, justiça, trabalho, moradia, dinheiro, saúde, amor e esperança, além do fim da violência e da corrupção.

Renato Lage se consagraria anos mais tarde, na Mocidade Independente de Padre Miguel, e segue atuante em alto nível até hoje, na Portela, tendo passado por Salgueiro, Grande-Rio e Vai-Vai, entre outras.

Quarta escola a desfilar no domingo de carnaval, e com um orçamento baixo, mesmo para os padrões da época, a escola apostou na criatividade, em detrimento do luxo. Para facilitar a evolução dos componentes, as fantasias receberam mais investimentos nas palas e nos chapéus, e não incluíam adereços de mão, que podem se tornar um tormento ao longo da avenida.

Outra grande virtude estava no samba de Aluízio Machado, Jorge Nóbrega e Luís Carlos do Cavaco, o mais popular daquele ano, que não deixava dúvidas a respeito do sentimento que dominava a nação naquele primeiro carnaval da Nova República:

“Me dá, me dá / Me dá o que é meu

Foram vinte anos / Que alguém comeu

(...)

Cessou a tempestade

É tempo de bonança

Dona liberdade

Chegou junto com a esperança”

A comissão de frente era formada por mercadores do desejo, carregando uma Lâmpada de Alladin. Atrás deles, o abre-alas, que teve alguns problemas para entrar na avenida, representava uma grande Fonte dos Desejos. Dona Olegária dos Anjos representava a “rainha do sindicato”, no carro que pedia emprego.

Eram 288 ritmistas a integrar a “Sinfônica do Samba”, que não fez a tradicional parada no recuo do meio da avenida, comprometendo a evolução e a harmonia da parte final da escola, que perdeu um pouco da referência dada pela bateria. O casal de mestre-sala Robertinho e Irene vinha nesse setor e, a despeito de terem conseguido as notas máximas, estavam aquém da capacidade demonstrada em outros anos, segundo relato da época.

Atrás da velha-guarda, que encerrou o desfile, um grupo de jornalistas aproveitou a deixa e entrou no embalo, clamando por reposição salarial. Houve uma breve confusão, mas conseguiram atravessar a avenida com uma grande faixa, mandando seu recado.

Perdendo dois pontos em alegorias e adereços, dois em conjunto, um em bateria, e outro em enredo, a escola atingiu 209 pontos na apuração, terminando em terceiro lugar, atrás de Mangueira e Beija-flor. O resultado seria igualado em 1987, mas, desde então, a escola jamais foi além do sexto lugar em 1996, com outro enredo altamente politizado, homenageando Betinho de Sousa e sua luta pela erradicação da fome (“quem é pobre tá com fome, quem é rico tá com medo”).

E 35 anos se passaram. E poucos desejos foram saciados. Quando muito, um ou outro, por um breve período. Infelizmente, a tempestade voltou, e Dona Liberdade ameaça partir novamente, levando com ela sua amiga Esperança, certamente assustadas por essa espécie de surrealismo que dita os rumos do país, e provocou o ressurgimento de crenças medievais.

Queremos saúde! Queremos vacinas! Queremos que doutores sejam doutores, e não passem por bedéis, como dizia a letra do samba imperiano.

Queremos um líder que lidere, que assuma suas responsabilidades, não que as transfira.

Queremos justiça. Uma justiça que se faça a tempo de evitar a perda de outros 300 mil irmãos.

Afinal, “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.”, como disse Rui Barbosa.

Com o verde imperiano da esperança, desejo a todos saúde e serenidade para enfrentar o caos que se avizinha. Quando essa nova tempestade cessar, havemos de festejar a liberdade reinando, novamente, em paz.

“O branco é paz, o verde é esperança

Diz o ditado, quem espera alcança

Eu esperei e alcancei

Império, tudo por ti farei”

(trecho do primeiro samba do Império Serrano, composto por Antenor Almeida dos Santos)

Parabéns, e vida longa ao Império Serrano, ícone da resistência cultural!

Axé.

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.