Por Danilo Nunes *
Um dos discursos mais comum no Brasil quando nos referimos à formação cultural do país é a reverência orgulhosa que fazemos à miscigenação. São utilizadas muitas justificativas para abordar a questão cultural, como por exemplo, a de que o povo brasileiro possui uma cultura miscigenada, sendo isso uma qualidade adquirida por meio da nossa história. Antropológica, simbólica ou economicamente, as misturas de hábitos, costumes, expressões, arte, sonoridades, as misturas encontradas nesse caldeirão chamado Brasil são tratadas como grande diferencial do nosso povo. De certa forma é verdade, assim como essa mistura também se torna particularidade das nações e povos que foram colonizados de forma exploratória.
Para dar início a essa reflexão, faço referência ao tema deste artigo, onde penso dar à palavra miscigenação o seu real e duro significado. Não nos enganemos com o que nos parece semelhante nos termos Cultura Miscigenada e Diversidade Cultural. Somos um povo, assim como todos os povos da América, que possui uma grande diversidade em nossa cultura, mas somos uma nação estuprada histórica, literal e simbolicamente desde o período colonial.
Na educação de base, somos condicionados a acreditar que o Brasil foi descoberto pelos europeus. Não foi. Os índios (termo a que muitas vezes, caricaturalmente, nos referimos aos povos nativos) já habitavam essa terra e foram brutalmente escravizados e dizimados, além dos negros e negras da África Ocidental que foram trazidos, forçadamente como escravos. Darcy Ribeiro, em seu livro O Povo Brasileiro, já disse: “Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.” O estupro foi coletivo, cultural e físico. Negras e Índias eram constantemente estupradas, gerando novos seres humanos decorrentes desses atos. Crianças sem identidade. A cultura desses povos, massacrados pelo homem branco, foi destruída e, quando não, apropriada pelo próprio europeu.
O que restou? A busca constante por uma identidade cultural e um mercado derivado do sistema capitalista, neoliberal e patriarcal, implantado por nações que se consideravam, e ainda se consideram, melhores do que bárbaros e selvagens, como definiam aquela gente desconhecida por eles. Do que se produzia culturalmente antes da chegada do europeu, tanto na África quanto no Brasil, ainda há resquícios, que são defendidos com luta social por descendentes dessa ancestralidade longínqua, que nos mostra, dia a dia, o sangue que carregamos em nossas mãos e os crimes que foram recalcados em nossos inconscientes coletivos. Afinal, quem são os ladrões? Quem são os assassinos?
Além da escravidão, a servidão também apontava os rumos para um sistema desigual. A mulher, condicionada a servir o homem e tida como propriedade de tal, era apenas um objeto estético que servia de escada para que o homem adquirisse, cada vez mais, o seu status de chefe de família, e construísse seus próprios impérios comerciais e econômicos, gerando a todo instante a desigualdade social que se intensificou até os dias atuais. As mulheres tinham seus direitos subtraídos e suas possibilidades cada vez mais limitadas pela sociedade, por meio da força bruta e da violência física e moral.
Ciclicamente, por meio da alternância de poder, quando uma “pseudo” democracia é coroada em tempos pós-ditatoriais, muitas dessas mulheres negras, índias e brancas passam a ter acesso a materiais e eventos que as possibilitam adquirirem a tão fundamental consciência de classe. Por meio disso, chegam às suas ancestralidades resgatando e ressignificando, em tempos atuais, formas e conceitos culturais que na Idade Média tentaram queimar junto com as Joanas, Marias, Catharinas, entre outras consideradas ameaças à humanidade por bruxarias e rebeldias contra o sistema. Hoje conhecemos os privilegiados que são combatidos incessantemente pelas mulheres negras, índias, trans, ainda com pequena representatividade institucional, mas com grande poder de comunicação através de suas mais autênticas formas de expressões culturais.
Do Lundu ao Samba, do Jazz ao Blues, Do Rock ao Pop, do Teatro de Revista ao Teatro Contemporâneo, das tradicionais e elitizadas pintura às artes isuais contemporâneas, essas mulheres estão, acima de tudo, interligadas, unificadas e antenadas, empurrando o homem branco para uma desconstrução social e, muitas vezes, os tornando soldados de suas causas. Foi como nomeou seu livro, publicado em janeiro de 2018, a amiga, escritora e filósofa Marcia Tiburi: “Feminismo em comum: Para Todas, Todes e Todos.”
A luta da mulher é uma luta, antes de tudo contra um sistema que oprime, ameaça, reprime e gera a maior das desigualdades socioculturais, colocando o homem branco, colonizador, com seu cristianismo ocidental, como centro do mundo e que, a partir dele, dita as regras sobre o que é certo e o que é errado.
Nesse cenário na atualidade, principalmente na última década, surgem mulheres que, desconstruindo os conceitos coloniais e feudais, se empoderam e passam a expressar suas reflexões e consciências de classe a partir dos diversos meios de comunicação. De forma objetiva e/ou subjetiva, a arte é uma das ferramentas de libertação social onde os recursos são ilimitados. Assim, me vêm alguns nomes, como Ludmilla, Preta Rara, Luedji Luna, Katú, Djuena Tikuna, Dandara Manoela, Bia Ferreira, entre outras cantoras, intérpretes e compositoras que trazem em seu canto, e em sua obra, toda a ancestralidade das mulheres e povos oprimidos por séculos. São ativistas e muitas delas não têm formação universitária ou acadêmica, mas possuem como matéria prima de seus estudos e opiniões, suas próprias vidas e as condições que foram expostas.
Aqui peço licença à literatura de cordel para fazer a citação de trecho do poema Cante Lá que eu Canto Cá, feito por um sertanejo semianalfabeto que perdeu os olhos e a visão e que, hoje, é estudado em qualquer grande academia. O cearense Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré:
“...Sua rima, inda que seja
Bordada de prata e de ôro
Para a gente sertaneja
É perdido este tesôro
Com o seu verso bem feito
Não canta o sertão dereito
Porque você não conhece
Nossa vida aperreada
E a dô só é bem cantada
Cantada por quem padece...”
Assim finalizo esse artigo, deixando a efeito de reflexão que o Brasil possui diversidade cultural e pluralidade, mas a miscigenação não é motivo de orgulho, pois é a herança que iremos carregar por toda vida, da injustiça irreparável que foi cometida contra os povos nativos, que aqui habitavam, e contra os negros e negras africanas, sendo o grande alvo dessa mistura o ventre das próprias mulheres. Foi desse ventre que viemos nós, prova do maior crime que a humanidade já cometeu.
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*Danilo Nunes é músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latino-americana.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum