Por Mônica Francisco *
Chegar em casa depois de lavar o banheiro de quem pagava o salário e ter que levar baldes para enfrentar a imensa fila da “biquinha”, na entrada do Borel, era um verdadeiro pesadelo, imposto para mim e para centenas de moradoras e moradores durante muitos anos. Ter de passar quase dois anos seguidos sem ver a água entrar na caixa d’água e ser obrigada a adaptar sua existência ao carregamento de baldes e galões para garantir que não faltaria a água para o feijão, ou para lavar a própria louça. Durante muitos anos eu fui empregada doméstica e vivi a experiência que continua se repetindo para muitas trabalhadoras domésticas que sofrem ainda mais com a pandemia da Covid-19 no Rio de Janeiro. Isso porque, além de acesso precário à água, a maioria não tem o direito ao isolamento garantido, precisando se deslocar para trabalhar.
A rotina diária começa desde o acordar, às 4h da manhã, para deixar o pouco de comida pronta para os filhos. Ser obrigada a passar horas em transporte público lotado e com aglomeração, exposta à doença, atravessar as entradas de serviço que representam mais as saídas das trabalhadoras domésticas do mercado formal de trabalho e dos direitos, até ser obrigada a trabalhar na casa em que patrões têm sintomas de Covid-19, ou se recusam a utilizar máscaras, conforme relatos. Estas violações trabalhistas e de direitos humanos acontecem mesmo sob o apelo do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas para que haja dispensa remunerada das profissionais.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2018, do IBGE, a categoria reúne cerca de 6,2 milhões de pessoas, sendo que 92% são mulheres e, entre elas, 68% são negras. Para este 8 de março e para a luta das mulheres, é fundamental que pensemos a divisão sexual e racial do trabalho, como Lélia Gonzalez nos alerta. Isso porque mulheres negras estão muito mais em trabalhos domésticos e de cuidados. As 3,9 milhões de trabalhadoras negras domésticas no Brasil representam mais que o triplo do total de caminhoneiros no país, categoria que foi incluída no grupo prioritário de vacinação pelo governo federal.
Sabe-se bem que, no Rio de Janeiro, a primeira morte notificada por Covid-19 foi de uma trabalhadora doméstica, Cleonice Gonçalves. E é esse Estado que opera uma agenda necropolítica de aprofundamento da militarização, decidindo quem se deixa morrer e quem poderá viver, com aguda precarização e interdição do acesso a serviços infraestruturais. Temos visto, diante dos nossos olhos, o sucateamento da Cedae, empresa pública que é lucrativa aos cofres públicos, e a tentativa de sua privatização.
Vender a Cedae significa negar o direito humano à água às pessoas mais pobres e piorar ainda mais a crise sanitária da Covid-19, uma vez que, sem água e saneamento as condições de higienização contra a doença são impedidas. Sabemos que para muitas mulheres não existe a possibilidade de comprar álcool em gel, por falta de dinheiro, e que água e sabão são as principais formas de higienização.
Enquanto isso, a militarização é aprofundada com as operações policiais – mesmo com decisão contrária do STF. São inúmeros os assassinatos de filhos, irmãos, pais, avós, tios e jovens das famílias das mulheres negras. A luta contra a violência policial é diária nas favelas e periferias. Desde dezembro do ano passado, três crianças de Belford Roxo estão desaparecidas sem qualquer comprometimento do Estado. Nós, mulheres negras, estamos cansadas de chorar e viver em luto.
Não temos mais dúvidas de que, no Brasil, o enfrentamento a essa lógica neoliberal e necropolítica passa, necessariamente, pelas mulheres negras. Nós que somos trabalhadoras domésticas, da saúde, do comércio, da limpeza, caixas de supermercado. Nós que em nossas favelas e periferias lutamos para impedir o fechamento do postinho de saúde, que denunciamos o fim das linhas de transporte público, que gritamos no chão das favelas contra a violência policial, que reivindicamos vagas nas creches. Somos nós, mulheres negras, que trabalhamos diariamente na linha de frente de combate à Covid-19, da limpeza do chão dos hospitais ao cuidado com os pacientes. Nós defendemos a vida. Defendemos o serviço público na contramão de governos que querem privatizar e vender até a água.
Pensar a condição das mulheres trabalhadoras, periféricas e majoritariamente negras é também discutir os rumos da sociedade do trabalho. A crise agravada na pandemia mostra, para quem quiser ver, a verdadeira face desse sistema cruel em que vivemos, vulnerabilizando ainda mais segmentos específicos da sociedade e empurrando as mulheres negras, que hoje são a maioria esmagadora na fila do desemprego, na composição do trabalho informal e as principais provedoras de famílias inteiras às piores condições de existência. Até quando nossos corpos serão sacrificados para pagar a conta de uma crise que, na realidade, é do sistema capitalista, e não nossa? É preciso afirmar “nós, mulheres negras, não pagaremos a conta da crise”!
*Mônica Francisco é deputada estadual no Rio de Janeiro (POSL) e presidente da Comissão do Trabalho da Alerj.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.