Por Vagner Marques *
Georg Orwell publicou há quase 72 anos o livro 1984, um dos mais importantes romances do século XX. A obra de imediato ganhou grande repercussão, tradução para diversos idiomas e até hoje é objeto de leituras, novas edições e ressignificações.
Segundo o livro, depois de uma guerra em escala global, análoga à 2ª Guerra Mundial, que acabou com as nações, o mundo foi dividido em três grandes estados transcontinentais. Um deles, a Oceânia, é governada por um líder supremo, o Big Brother. Um homem de 45 anos, bigode preto e face de poucos amigos.
O Grande irmão vê tudo, absolutamente tudo o que ocorre nas regiões da Oceânia. Nas ruas é comum identificar cartazes espalhados com a frase “O grande irmão está de olho em você”. Todas as relações sociais são vigiadas e as listas de proibições eram vastas. Entretanto, embora o Grande Irmão (Big Brother) fosse temido por todos, ninguém o conhecia fisicamente.
O livro tem um caráter profético ao apontar uma sociedade com amplo controle da privacidade, monitoramento social, dos comportamentos, regulamentação do pensamento e o domínio sobre os corpos, desejos, sensações e subjetividades.
Décadas depois da publicação do livro, vivemos em uma sociedade controlada por câmeras de monitoramento, aplicativos que identificam a localização, satélites e outros dispositivos. Somos vigiados o tempo todo e, na casa mais vigiada do Brasil, isso é amplificado pelo voyeurismo, a prática de exibicionismo através do programa Big Brother Brasil.
O programa com sucesso de audiência chega à 21º edição com a participação de artistas e celebridades das redes sociais. Os milhões de seguidores foram critérios de seleção de um grupo seleto de participantes denominado de camarotes. estes se misturaram com pessoas anônimas, chamadas de pipoca.
Acompanhar o que as pessoas fazem na casa, o que comem, as brigas, as tramas do poder e os romances é um delírio para quem está do lado de fora. Fãs clubes são criados e torcidas organizadas, como num estádio de futebol, acirram a rivalidade entre aqueles mais amados e os mais odiados.
Dentro da casa, quanto mais o vale tudo é estimulado, mais as torcidas vão ao delírio. Uma espécie de catarse religiosa se ativa nas redes sociais, um movimento de transe se manifesta no Instagram, Twitter e Facebook a cada briga, manipulação de votos, tramas pelo poder, romances firmados, pares escondidos nos edredons e disputas pela liderança.
Karol Conká, mulher negra, rapper e curitibana, entrou com força total e favoritismo. Sua trajetória na música e sólida carreira assustaram muitos participantes. Só que, no desenrolar do programa, ela tirou a capa de artista e demonstrou sua condição humana, semelhante a muitos de nós, que pelo anonimato manifestamos o ódio sem o registro das câmeras do BBB.
A admiração pela artista, mulher guerreira, forte, militante da causa feminina e negra sucumbiu diante das polêmicas com as quais esteve envolvida durante sua participação no Big Brother Brasil. Destaco duas dessas polêmicas:
Primeiro, manifestou comportamento xenófobo ao comentar com ar de superioridade, por ser curitibana, sobre a participante nordestina Juliette. De imediato, as torcidas do lado de fora da casa iniciaram o movimento de cancelamento de Karol Conká e suas redes sociais passaram a perder um grande volume de seguidores.
Outro episódio de destaque polêmico foi a briga com o participante Lucas Penteado, após a festa Herança Africana, realizada no dia 30 de janeiro. Lucas se excedeu no álcool, questionou muitos participantes da casa, mas Karol levou a questão adiante. Durante sua refeição, obrigou Lucas a sair da mesa para que ela comesse sem a presença dele. Esse episódio transformou Karol Conká num dos assuntos mais comentados das redes sociais e seu cancelamento registrou picos de perda de seguidores.
Há outros episódios polêmicos envolvendo Karol, mas esses dois são suficientes para entender o acúmulo de perdas. Até o momento, foram centenas de milhares de seguidores e mais de R$ 5 milhões em contratos, shows e patrocinadores, além da eliminação recorde, com 99,17% dos votos.
A eliminação de Karol Conká foi um dos momentos de maior audiência do programa, um dos assuntos mais comentados nas redes sociais e os momentos que antecederam o anúncio de sua saída se assemelham ao último pênalti batido numa final de Copa do Mundo. Assim que sua eliminação foi confirmada, fogos foram lançados, gritos, aplausos, panelaços e as redes foram tomadas pelo assunto #ForaKarolConka.
Sua saída da Rede Globo de Televisão foi acompanhada por seguranças, que temia os atos na porta da emissora. Um grande esquema foi montado para que sua integridade física fosse preservada.
O cancelamento de Karol Conká parece não ser suficiente. Deixá-la de seguir nas redes sociais é pouco. Foi preciso mais que isso. Foi preciso destilar o ódio, gritar ofensas, colocar em risco sua integridade, ameaçar sua família, vociferar xingamentos e colocá-la em risco de vida. Mas por que tudo isso? O que Karol Conká tem a nos ensinar?
Ao manifestar esse ódio, não estaríamos fazendo as mesmas coisas que repudiamos nela? Seria o nosso anonimato a capa para esconder nosso ódio dos olhos do Big Brother? Por que essa exigência ética não se manifesta a outras esferas da sociedade, mas somente com participantes de um reality show?
Não sou condescendente com o comportamento de Karol Conká dentro da casa mais vigiada do Brasil, prefiro apenas não consumir esse produto de entretenimento, assim não cancelo apenas a Karol, mas sim o próprio programa em si.
Prefiro observar, acompanhar, vigiar e cancelar o comportamento do ministro da Saúde, que até o momento não deu saídas concretas para nosso país, que atravessa uma pandemia com mais de 250 mil mortes. Prefiro acompanhar, vigiar e cancelar o governo federal, que não apresentou uma resposta de fato para o programa vacinal contra o novo coronavírus.
Prefiro acompanhar, vigiar e cancelar o ministro da Educação, que não apresentou respostas para a educação em tempos de pandemia. Prefiro acompanhar, vigiar e cancelar os políticos do nosso país, que administram o dinheiro público sem apresentar contrapartidas de fato para a melhoria da qualidade de vida.
Prefiro acompanhar, vigiar e cancelar todos aqueles que, responsáveis pelo coletivo, instrumentalizam seus afazeres para benefícios privados. Prefiro acompanhar, vigiar e cancelar os responsáveis pela administração pública, vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores e presidente, representantes eleitos pela população para garantir o bem comum.
O cancelamento destes se dá nas urnas e seus vacilos devem sim ser observados e compartilhados, e no caso da manutenção das tramas pelo poder, do gasto público com festas privadas, na incompetência de gerenciar o bem comum, cancelar nos votos.
O cancelamento de Karol Conká nos ensina que fazemos escolhas dos cancelados. São somente aqueles que vivem o entretenimento. Os participantes do BBB não são responsáveis pela administração pública e, ao que me parece, o Big Brother Brasil tem mais importância do que aqueles que de fato administram as nossas vidas.
*Vagner Aparecido Marques é professor universitário, historiador, doutor em História Social e mestre em Ciências da Religião, ambos pela PUC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.