Por José Guimarães *
Sob intensa expectativa do país, a Câmara dos Deputados abre seus trabalhos na primeira semana de sessões legislativas do ano. O povo brasileiro a tudo assiste, com grande ansiedade e talvez com alguma esperança por soluções para os problemas cruciais que afetam sua vida e a de seus entes queridos: uma pandemia que mata mil brasileiros por dia, uma vacinação a conta-gotas que sequer conseguiu atingir todos os trabalhadores da linha de frente do Sistema Único de Saúde, a explosão do desemprego, o fim do auxílio emergencial, milhares de famílias que ingressam na linha de pobreza absoluta, a ausência de recursos públicos tanto para novos leitos quanto para fazer frente a uma competição selvagem no mercado mundial por vacinas e insumos, o fantasma da recessão econômica.
Qual a resposta desta Casa para essa imensa angústia nacional? A proposta do PLP 19/2019, sobre a autonomia do Banco Central! Se no dia da eleição da nossa nova Mesa Diretora nós disséssemos que esta seria a pauta dos nossos primeiros dias de trabalho, seríamos acusados de “fake news”, de oposicionismo radical. E nesse triste contexto nem mesmo os argumentos se renovam. Tal como na Emenda 95 do teto constitucional, na reforma da previdência e na reforma trabalhista, argumenta-se que a medida agora proposta irá atrair investimentos, oferecer segurança econômica e aumentar a credibilidade frente aos mercados privados nacional e internacional. Mais uma vez, como um passe de mágica, promete-se resolver todos os profundos problemas de nossa economia. Ao invés de promover a prorrogação do auxílio, políticas de geração de renda em emprego para sair da crise e o desenvolvimento da vacina, o governo pauta temas de interesse do sistema financeiro, ignorando a fome e fazendo enorme descaso com o sofrimento das vidas humanas.
A nova “maravilha curativa” liberal se resume, basicamente, num mandato fixo de quatro anos para presidente e diretores, que não pode ser interrompido, salvo em casos definidos na lei, e descasado do mandato do presidente da República. Com isso, os diretores nomeados permanecerão nos seus cargos em parte do próximo governo eleito. No caso atual, o presidente Roberto Campos e dois diretores permaneceriam até dezembro de 2024.
Ora, um mandato fixo descasado do mandato da presidência da República retira autoridade do governo eleito sobre um instrumento central de política econômica e o transfere a agentes frequentemente sujeitos à captura do setor financeiro. As decisões dos dirigentes do BC dependem de seu conhecimento e convicções pessoais, mas também das pressões a que estão submetidos. A pressão das instituições financeiras, como antigas e futuras empregadoras dos próprios dirigentes do BC (no fenômeno conhecido como “porta giratória”) e de boa parte de seus círculos sociais, tende a ser muito efetiva. Sem ser contraposta pelo governo, que regularmente deve prestar contas nas urnas, a pressão do mercado financeiro pode engendrar decisões do BC que desfavoreçam o interesse da população. Um BC autônomo do governo, mas não das instituições financeiras, pode levar, por exemplo, a taxas básicas de juro muito altas e a crédito mais caro para empresas e pessoas e, assim, a um menor crescimento econômico e ao aumento da concentração de renda.
Ou seja, a proposta dificulta a coordenação dos instrumentos de política econômica. Ao invés da prometida segurança e estabilidade econômica, no caso da vitória de uma proposta de oposição à política econômica atual, desenha-se um cenário de confronto e disputa entre um novo governo eleito e o BC do governo por ele derrotado. Em metade do mandato do presidente da República eleito, os dirigentes do BC seriam aqueles escolhidos pelo presidente anterior, que poderiam tomar decisões contrárias às preferências do governo eleito. Este, apesar da legitimidade oriunda do voto, veria-se impossibilitado de implementar parte de seu programa. De nada adianta implementar uma política fiscal expansionista se a política monetária impõe elevados juros que impedem o crescimento econômico e a geração de empregos. Se a política monetária conduzida pelo BC se sobrepõe às demais política macroeconômicas, é difícil garantir os objetivos de um programa de governo.
Em relação à quarentena para evitar essa porta giratória entre o setor financeiro privado e o Banco Central, o PLP é tímido, e restringe em apenas 6 meses o período em que um diretor ou o presidente fica impedido de trabalhar no mercado financeiro. É evidente que esse tempo reduzido se constitui num verdadeiro incentivo às relações hoje já bastante promíscuas entre dirigentes públicos e o setor financeiro.
A aprovação dessa medida infeliz significa despojar a Presidência da República de poderes fundamentais para a condução da economia, o que demonstra o que já pressentíamos nas novas relações do Centrão com o Capitão Bolsonaro. Pouco a pouco, o presidente será esvaziado de seus poderes para que o “mercado” e o Centrão governem.
O açodamento em atender o capital financeiro impediu o debate e levou à aprovação de um projeto equivocado e falho. Os anseios principais da nossa população foram absolutamente ignorados. Quanto aos objetivos do Banco Central, ficamos restritos apenas ao da estabilidade de preços, sem que haja uma preocupação com seus efeitos sobre o desemprego. O PLP inclui novos objetivos para o Banco Central, mas subordinados a esse objetivo maior, logo, com pouco efeito prático. Os novos objetivos, acessórios, seriam de zelar pela estabilidade e eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações da atividade econômica e fomentar o pleno emprego. Para que não se trate apenas de retórica, o correto seria tornar o objetivo do pleno emprego tão central quanto o da estabilidade de preços, no que se chama de duplo mandato, tal como o Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos.
A proposta é, portanto, antidemocrática, não atende aos interesses do povo brasileiro e poderá gerar crises futuras na condução da política econômica. Começamos muito mal essa legislatura. Com prioridades equivocadas em momento de tão grave crise, só comprova o desgoverno a que estamos submetidos.
Lutaremos para que na próxima semana as verdadeiras prioridades de nosso povo sejam contempladas: vacina, auxílio emergencial, mais verbas para a saúde e para a pesquisa, e emprego. Essa é a nossa pauta! Essa é a pauta do povo brasileiro!
*José Guimarães é deputado federal, vice-presidente nacional do PT e líder da Minoria na Câmara.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.