Por Yuri Soares Franco *
Nas últimas semanas a internet tem sido palco de debates acalorados sobre os posicionamentos de artistas e influenciadores digitais autoproclamados “militantes” de diversas causas sociais. Estes debates furam a bolha e envolvem até mesmo quem não assiste ao Big Brother Brasil.
Com uma série de posicionamentos equivocados e agressivos relatados nas redes sociais, estes supostos “militantes” teriam cometido inúmeros preconceitos: contra o Nordeste, abuso psicológico contra outro participante negro, bifobia (preconceito contra bissexuais) e abordagens no mínimo questionáveis sobre religiosidades de matriz africana.
Tudo isto sendo feito justamente por pessoas que se julgam e se apresentam como militantes de causas coletivas e sociais. No programa, ao menor sinal de crítica, sacam a cartada do lugar de fala e interditam o debate.
Parece com algo que você já viu antes, não é mesmo? O papel ridículo que estes militudos estão assumindo em rede nacional não afeta apenas a carreira deles. Atrapalha debates sérios e importantes que dizem respeito a milhões de pessoas. Não dá nem para falar que militaram errado pois aquilo nem militância é.
Há algumas posturas que podem ser assumidas nesta situação. A primeira é a de quem não assiste ao programa e diz que não tem nada a ver com isso e simplesmente afirma que há questões mais importantes a serem acompanhadas e debatidas. É compreensível, mas precisamos entender que, mesmo que não gostemos do programa, nem da emissora ou dos participantes, as questões ali debatidas ultrapassam os muros do Projac, a audiência da Globo e as hashtags nas redes sociais.
A segunda é a de acusar uma suposta manipulação do debate público pela Globo. Esta teria selecionado as pessoas mais desprezíveis para montar um espantalho público do que seria a militância para ser espancado em praça pública. Pode ser verdade? Conhecendo a história da emissora, sabemos que sim, mas isso não diminui a facilidade que a Globo teve para encontrar pessoas com este perfil.
A terceira é a de compreender que, de uma forma ou de outra, a Lumena, Karol Conká e Projota são produtos da sociedade. Frutos do seu tempo e da ideologia dominante. Isto não os exime individualmente pelas suas atitudes e escolhas éticas e morais. Mas o que precisamos encarar de frente, hoje, é que o Brasil está cheio de pessoas iguais a eles, pautando debates públicos de forma completamente equivocada, apenas em proveito próprio, sem formação e sem prestar contas a nenhuma coletividade. O puro suco do individualismo e da suposta meritocracia.
Nos últimos anos assistimos ao fenômeno da transformação de influenciadores digitais e celebridades em supostas lideranças de movimentos sociais e de suas pautas. Deixamos de lado e silenciamos vozes verdadeiramente representativas, de pessoas e movimentos com enraizamento de base. Gente cujo conhecimento provém do diálogo e construção coletiva com outras pessoas. Que compreende a importância de questões como acolhimento, conversa, compreensão, debate, prioridades, mediação e consensos e da necessidade de construção de pontes para fora de seus grupos sociais específicos, conquistando aliados, visando à obtenção de uma maioria social para ganhos coletivos.
Só que o neoliberalismo avançou sobre os movimentos, no que Nancy Fraser chamou de “neoliberalismo progressista”***, que em resumo é a união de pautas da diversidade com uma defesa de um capitalismo cada vez mais radical. São bancos e grandes empresas quem contratam estas figuras públicas para dar uma imagem bonita de diversidade, enquanto nos exploram cada vez mais. Hoje, o que importa mais é ser um indivíduo com grande visibilidade nas redes sociais e ganhar dinheiro com isso. Se uma pessoa “chega lá”, ela logo passa a comemorar a vitória e a meritocracia, pouco importando a situação dos seus irmãos, mesmo que, para isso, tenha que vestir máscaras, mentir e passar a perna em todo mundo.
Comunidade? Classe social? Povo? Tudo isso passa longe destas vertentes liberais dos movimentos. Não dá para fechar os olhos e pensar que estas figuras que estão na televisão são exceções. Basta uma breve navegada nas redes sociais para perceber isso. Quem nunca viu uma figura destas implodindo ou bombardeando algum movimento social legítimo? Seja por ação ou omissão, o cancelamento hoje é uma realidade e sabemos disso. Vale quem tem mais likes, não importando a verdade dos argumentos ou as implicações posteriores.
Precisamos, daqui para frente, compreender em primeiro lugar que rede social não é movimento social, e que influencer não é representante de coletividades, ainda que seja reflexo destas. É necessário, também, resgatar a importância do trabalho conjunto para a conquista de maiorias sociais.
A lacração, tombamento e cancelamento podem ser ótimas táticas para uma pessoa ter visibilidade e gerar engajamento com os algoritmos das redes sociais, ganhar likes e dinheiro, mas não ajudam a conquistar a maioria do povo para as opiniões comunitárias e mudar a realidade coletivamente. Mais do que nunca precisamos adotar uma pedagogia de diálogo e paciência como já propunha Paulo Freire. Trilhar um caminho em que percebamos que a vida não é um jogo e, ou lutamos juntos por um mundo melhor, ou sucumbiremos nessa guerra eterna de cada um por si e todos contra todos.
Apedrejar Karol Conká, Projota e Lumena nas redes sociais, fingindo que não temos nada a ver com estas figuras, acusando conspirações globais, pode gerar um alívio imediato, mas e depois? Qual a grande lição e crescimento se pode retirar de tudo isso?
* Yuri Soares Franco é mestre em História pela Universidade de Brasília e professor da SEEDF.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
*** Para entender melhor o neoliberalismo progressista: https://www.brasildefato.com.br/2017/01/27/o-fim-do-neoliberalismo-progressista