Por Simone Nascimento*
Cenas do reality show Big Brother Brasil 2021, da TV Globo, geraram, por estes dias, uma importante discussão sobre autodeclaração negra. Gil, um dos participantes do programa, teve sua autodeclaração questionada por outros integrantes negros. Nego Di e Karol Conká o classificaram como “sujo” e de semelhança com um “neandertal”. Lumena lembrou da autodeclaração, mas na sequência fez uma piada dizendo que então ela era um “unicórnio”.
Não se trata aqui de não compreender as ações feitas individualmente pelos participantes, mas de também responsabilizar o reality e a emissora por não imporem regras em respeito aos direitos humanos, muito menos de se propor a debater com seus telespectadores os impactos de cenas como essas, no desserviço ao combate ao racismo no Brasil.
Silvio de Almeida, no livro “O que é Racismo Estrutural?”, afirma que “parte expressiva da sociedade considera ofensas raciais como ‘piadas’, como parte de um suposto espírito irreverente que grassa na cultura popular em virtude da democracia racial”. E foi exatamente numa troca de diálogo cheia de humor que essas ofensas aconteceram no reality show e foram naturalizadas pela emissora.
Também é verdade que não podemos confundir falas individuais como falas de autoridade em determinadas discussões, mas enquanto negros, em TV aberta, as falas dos participantes têm grande impacto na formação de opinião e entendimento da população sobre o tema e é preciso fazer a discussão.
Vivemos num país onde descendentes de africanos e indígenas, miscigenados pela colonização e escravização portuguesa europeia, já foram chamados de mulatos, cafuzos, mamelucos e outras dezenas de termos animalizantes. Autodeclarar-se negro é uma conquista do nosso movimento social, em defesa da consciência negra, e devemos combater noções que associem o não branco a algo sujo e desumano.
A autodeclaração foi exatamente uma de nossas vitórias contra a tese da democracia racial, que diz que após séculos de escravização e estupro de mulheres negras por seus proprietários, seguidos de uma libertação sem direito à terra e trabalho, conviveríamos numa nação em perfeita harmonia, sem tensões raciais.
Nesse grande processo de miscigenação, alguns de nós têm tons mais claros, outros mais escuros, temos fenótipos que lembram nossos ancestrais e formam nossas identidades, temos também a herança da pobreza em nossos territórios negros, passados de geração em geração de racismo. Todos nós vivemos numa sociedade em que a meta de documentos eugenistas era deixar todos ‘clarinhos’ e não permitir que o Brasil fosse o país mais africano fora de África. Aqueles mais próximos do ideal europeu sofrem menos discriminação racial, é verdade, do que aqueles que mais lembram nossos antepassados africanos, mas esse é um mecanismo da sociedade racista, não nosso. Nós queremos justiça!
Construir consciência negra num povo separado de sua terra e História, para que se entenda como povo que viveu um mesmo processo histórico, doloroso e etnocida, é parte da luta árdua do movimento negro brasileiro. A autodeclaração é uma conquista porque compreende os efeitos presentes dessa construção racista e afirma que ainda há tempo de fazer justiça, de poder sonhar com igualdade e humanização.
E não é fácil autodeclarar-se negro quando se é negro. Diferentemente do que se estigmatiza, aqueles que fraudam cotas raciais nas universidades o fazem exatamente por entender o privilégio de disputar o vestibular com pessoas que tiveram menos acesso à educação. Autodeclarar-se negro é parte do processo para enxergar a infeliz realidade de que somos 56% da população (segundo o IBGE) e tão poucos nos espaços de decisão do futuro da nação. A Consciência Negra é coletiva, não se limita a falas pessoais, mas sim em enxergar e denunciar que um Estado que nos reconhece na ponta do fuzil e presídios, e não age para promover justiça social tem na verdade um projeto de genocídio.
PS: O papel que cumpre a TV brasileira não é um assunto novo. Sueli Carneiro nos disse em 1999 que esse veículo de massas, hegemônico, de concessão pública, tem colaborado para o projeto de nação que é construído há mais de 500 anos, “um projeto que invisibiliza as lutas do presente por igualdade de direitos e oportunidades e pela afirmação da identidade étnico-cultural, as reivindicações de políticas públicas inclusivas, os exemplos heroicos de sobrevivência numa sociedade hostil e excludente em relação aos negros”. Não nos esqueçamos das estruturas.
*Simone Nascimento é jornalista, integrante da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado em São Paulo e do RUA – Juventude Anticapitalista.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.