Por Erica Malunguinho*
Há alguns meses vejo da janela do meu gabinete na ALESP um acampamento de militantes antivacina. Ter essa vista da materialização do caos civilizatório instaurado no país me faz celebrar a decisão do Ministro Barroso em tornar obrigatória a apresentação de comprovante de vacinação para a entrada do Brasil. Uma ação urgente e necessária para que mais vidas sejam salvas.
Nada mais justo, então, que citar a fala que referenda a postura do STF: “Todos os dias milhares de pessoas ingressam no Brasil por meio dos modais aéreo e terrestre, de modo que, a cada dia de não exigência de comprovantes de vacinação ou de quarentena, agrava-se o risco de contágio da população brasileira, podendo-se comprometer a efetividade do esforço de vacinação empreendido pelo próprio país.”
Nossa humanização está completamente ligada ao entendimento do outro enquanto indivíduo. Nos desenvolvemos a partir da socialização, da compreensão da existência do outro. Eu me afirmo porque o outro existe; eu me vejo a partir desse outro, aprendemos línguas, códigos de comportamento, movimento, gestualidade, tudo a partir do fantástico fenômeno da socialização. Sem a dimensão da coletividade não há seres humanos. Digo mais, sem a compreensão de tudo o que está presente em termos de matéria, não há mundo, não há natureza, não há sociedade, portanto, não há gente.
Enquanto isso, vale atentar, algumas Assembleias Legislativas Estaduais vivem dias de horror com tentativas desesperadas de intimidação por parte de negacionistas. Em São Paulo tramita, em regime de urgência, o PL 668/21, de autoria coletiva, para que seja proibida a exigência do comprovante de vacinação para ingresso a locais públicos e privados.
O discurso daqueles que defendem a não obrigatoriedade da vacina se dá em torno do jargão “Pela liberdade do povo paulista”. Essa dicotomia, totalmente absurda e injustificada, esbarra numa questão bastante simples: Existe uma enorme distância entre liberdade e responsabilidade. Entre coletividade e individualismo.
Para explicar, volto à recomendação do Conselho Nacional de Saúde, de agosto, que diz respeito ao servidor público: “todo servidor público tem o direito de exercer suas funções em um ambiente de trabalho seguro com normas de proteção à saúde, o que gera a obrigatoriedade de todo gestor público expedir normas para diminuir a propagação do Novo Coronavírus no ambiente de trabalho público, o que inclui a necessidade de vacinação de todos os servidores contra a COVID-19 como forma de evitar o contágio da doença, sendo por essa razão que o Conselho Nacional de Saúde recomenda a obrigatoriedade da vacinação de todes”.
Nada pode justificar ações criminosas à saúde pública, muito menos uma ideia distorcida e manipulável de “liberdade”. Estas mesmas pessoas que hoje dizem que a escolha de vacinar-se ou não é liberdade individual são as mesmas que não aceitam o direito da mulher optar pelo aborto, o direito ao uso do nome social, ou o uso recreativo de cannabis, para citar alguns exemplos.
Quando um comportamento individual ameaça a vida de outras pessoas, o pacto civilizatório deve prevalecer para que sejam impostas regras para impedir. Dos mais simples, como fumar em ambientes fechados, aos mais graves, como dirigir alcoolizado. O assustador é termos que repetir isso a exaustão em pleno 2021, sobre a necessidade de vacinação, no país que tem um histórico de tantos sucessos em cobertura vacinal e após 617 mil mortes por Covid.
*Erica Malunguinho é deputada estadual pelo PSOL em São Paulo, sendo a primeira mulher transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo