Por Renato Dagnino*
Ainda que muito meritória, e extremamente importante para sinalizar a necessidade de reorientar nossa política cognitiva (conceito com que por coerência e serventia enfeixo as políticas de CTI e de Educação), a Carta não chega a ser propriamente uma novidade.
Ela reitera, ademais, em termos argumentativos, algo que já se tem questionado. Chamo a atenção, nesse sentido, para sua derradeira e forte asseveração: “Agimos conscientes no intuito de preservar as instituições universitárias e científicas brasileiras, na construção do processo civilizatório no Brasil”.
Num momento em que os líderes da comunidade científica atacam as mudanças na política cognitiva que contraria seu interesse em preservar essas instituições, a frase, ainda que denuncie a ameaça que elas representam para esse processo, se encontra dentro do esperado.
Se traduzirmos na linguagem usualmente empregada por esses líderes “preservar as instituições” por fomentar a pesquisa científica e a formação de pessoal, e “construção do processo civilizatório” por crescimento econômico e bem-estar social, perceberemos que essa alegada causalidade tem sido reiteradamente apontada.
Ela se apoia numa relação causal, apoiada na observação de uma “foto” - estática - dos países para os quais existem proxies, que existiria do “preservar” para a “construção”. Essa “foto” mostraria a curva ascendente que plota uma variável proxy considerada independente, de input, - gasto em C&T -, e por isso representada na abcissa, contra outra considerada dependente, de output, - PIB per capita - na ordenada. A curva costuma ser apresentada, ou seu conteúdo referido, por aqueles líderes, como prova de que incrementar a pesquisa científica é condição até mesmo suficiente para que o país se desenvolva.
Embora exibida com um verniz científico, dado que baseada no que classificam como evidência empírica, essa curva expressa apenas uma correlação. Como ocorre com qualquer correlação, os que a querem interpretar como uma relação de causalidade para fundamentar alguma afirmação precisam de uma teoria.
Essa teoria é o que no campo dos Estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade hoje se chama de Determinismo e de Neutralidade da tecnociência. Ela celebra a existência de um conhecimento tecnocientífico que avança linear e inexoravelmente em função de desafios epistêmicos que ele mesmo se coloca levando a humanidade a estágios cada vez mais elevados de desenvolvimento. E de que ele, por ser neutro, desprovido de valores e interesses, pode ser usado para materializar qualquer projeto político.
Para mostrar como é essa teoria, aliás crescentemente questionada, e não a alegada evidência empírica o que sustenta aquela afirmação, convido primeiramente quem me lê a um prosaico experimento. Substitua o gasto em C&T por gasto em arte: a curva será igualmente ascendente e a causalidade, explicada por uma outra teoria, inversa.
Depois, pediria que analisasse alguns dos “fatos estilizados” que são citados para fundamentar aquela afirmação. Observações aparentemente sensatas, como a cepalina quando relacionava os preços de um kg de minério de ferro exportado ao de um automóvel (que na época era feito de aço), ou uma mais recente, que compara o preço de uma cápsula de Nespresso com o do café exportado, concluem - cândida e simploriamente - que, para “agregar valor as commodities” e desenvolver o País, “o que falta é ciência”.
Estou seguro que quem me lê sabe que o estilo de desenvolvimento primário-exportador foi desde sempre uma opção privilegiada pela nossa classe proprietária, conquistadora, escravocrata e predatória, mas muito competente no seu métier de enriquecer, haja vista a taxa de lucro que, legalizada pelo Estado que assegura a reprodução do (seu) capital, aqui vigora.
Para os que, buscando outras variáveis que expliquem o desenvolvimento vão aportar no outro conjunto da política cognitiva - a política de educação - e afirmar que uma causa fundamental do desenvolvimento é a educação, lembro duas frases. Uma de Darcy Ribeiro - “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto” - e outra de Paulo Freire - “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica.” Elas provocam uma reflexão crítica análoga àquela já esboçada sobre o “processo civilizatório” que se quer construir
Passo agora a dialogar com quem se interessa num “filme” - dinâmico - acerca do futuro, que mostre como “preservar [ou não] as instituições” promoveria ou dificultaria “o processo civilizatório”. Ou, mais simplesmente, retomando as variáveis usualmente empregadas pelos líderes da comunidade de pesquisa, se uma variação do gasto em C&T causaria no futuro uma variação de mesmo sentido do PIB per capita.
Quando se observa o comportamento passado dessas duas variáveis em países sobre os quais existe informação confiável, constata-se que não há evidência empírica consistente de que uma variação do gasto em C&T no momento t1 tenha sido acompanhada por uma variação de mesmo sentido do PIB per capita no momento t2 (sendo t2> t1).
Finalizando essas grosseiras análises estáticas e dinâmicas que mostram que não é aumentando o gasto em C&T que conseguiremos promover a “construção do processo civilizatório”, passo a uma conclusão/provocação em suspenso que visa a aprofundar a novidade que a Carta contém.
Talvez tenha sido por que alguns de seus signatários conheçam essas análises que a Carta dê a entender que o atual governo, que implementa uma política cognitiva que “boicota as suas recomendações”, deva ser substituído por um efetivamente comprometido com a “construção do processo civilizatório”.
Numa outra carta, endereçada ao povo brasileiro e aos que ele irá escolher para governá-lo, esses valorosos e valiosos signatários deverão indicar como terá que ser a política cognitiva - enquanto política-meio - que irá alavancar as políticas-fim responsáveis por essa “construção”.
Em particular, devem apontar como as instituições que querem preservar devem mobilizar seu potencial tecnocientífico para atender às demandas cognitivas embutidas nas necessidades coletivas por bens e serviços que serão produzidos mediante uma reconversão industrial a ser alavancada por uma estratégia de criação de trabalho e renda e de geração de renda pelos pobres. Centrada em arranjos econômico-produtivos distintos daqueles baseados na propriedade privada e na heterogestão, ela deverá compartilhar a agenda governamental com a convencional, mas cada vez menos eficaz, estratégia de geração de emprego e salário e distribuição de renda para os pobres.
Os que já sabem que as empresas privadas seguirão racionalmente desprezando os resultados da pesquisa que fazem e o pessoal que formam deverão com urgência reorientar as agendas de ensino, pesquisa e extensão daquelas instituições à nova política cognitiva que retomará a “construção” daquele “processo civilizatório”.
*Renato Dagnino é professor titular na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) nas áreas de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e de Política Científica e Tecnológica
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.