Por Paulo Nogueira Batista Jr *
Volto a fazer das tripas coração para falar do papel planetário que o Brasil será chamado a desempenhar em breve. O nosso futuro está logo ali, repito.
Não quero exagerar e muito menos assumir ares de profeta, mas sinto que corro esse risco outra vez, malgré moi même. Vou tentar segurar a onda.
Já escrevi sobre o papel planetário do nosso país em artigos anteriores desta coluna, publicados em julho e agosto últimos: “Brasil, país-planeta” e “A Rota da Boa Esperança”. Foram artigos meio delirantes, reconheço. Mas, desta vez, tenho o que os jornalistas chamam de “gancho”. E que “gancho”! Estou falando do sucesso retumbante da recente turnê europeia do ex-presidente Lula. Para surpresa de muitos aqui no Brasil, inclusive na esquerda, mas não para mim, o ex-presidente recebeu tratamento de chefe de Estado e liderança mundial nos vários países europeus que visitou.
Não tratarei da viagem propriamente dita, que foi amplamente comentada nas redes sociais, na mídia europeia e, até mesmo, ainda que com relutância, na mídia corporativa local. Gostaria apenas de ressaltar o que esse triunfo europeu pode prenunciar para um futuro governo Lula. Tentarei ser sereno e objetivo, ainda que os assuntos “Brasil” e “Brasil no mundo” tenham necessariamente forte carga emocional para nós, brasileiros.
A conjunção Brasil/Lula
Como ressaltou o próprio Lula, a recepção não foi somente a ele, mas ao grande país que é o Brasil. Bem sei que este grande país está irreconhecível, desde o golpe de 2016 e sobretudo com o governo Bolsonaro, mas os admiradores e interlocutores do Brasil na Europa estão torcendo para que isso seja só uma fase ruim. Eles sabem, por experiência própria, que fases ruins ou até péssimas fizeram parte da história de muitas grandes nações. Estão nos dando certo crédito, portanto. Evidentemente, a paciência tem limite, e se o Brasil reeleger o atual presidente, teremos esgotado nosso crédito como país na Europa e em outras partes do mundo. Mas é natural que Lula, que hoje lidera com folga todas as pesquisas de intenção de voto para as eleições de 2022, tenha sido recebido com a atenção devida, como ex e possível futuro presidente de um dos gigantes do planeta.
Insisto num ponto crucial: Lula não teria nunca o impacto que teve e poderá ter, na Europa e no resto do mundo, se fosse o grande líder de um país pequeno. Pepe Mujica, por exemplo, é figura extraordinária, mas o Uruguai não constitui base suficiente para uma liderança mundial ou mesmo regional. Xanana Gusmão é outra liderança excepcional, uma espécie de Nelson Mandela no Sudeste Asiático, mas Timor-Leste é um país ainda menor que o Uruguai. O que faz a grande diferença. neste momento, é a conjunção Brasil/Lula.
Não vejo, francamente, exagero no que acabo de dizer. Pode bem ser que o leitor ou leitora tenha restrições sérias e legítimas a Lula, e tenha lido com espanto e até repulsa os parágrafos anteriores. Como muitos brasileiros, também tive e tenho discordâncias com Lula. E ninguém é herói de perto. Mal-acostumados que estamos de ter Lula como compatriota, preferimos, às vezes, lembrar seus erros e limitações. E, no entanto, o fato é que desde Nelson Mandela, não aparecia, num país de médio ou grande porte, uma liderança de alcance potencialmente universal.
Vácuo planetário, potencial do Brasil
Há um terceiro elemento que abre espaço para a conjunção Brasil/Lula. Refiro-me a certo vácuo de liderança no planeta. Quis o destino que ao Brasil tenha sido concedida a oportunidade de retomar seu rumo num momento em que o quadro internacional se vê dominado por tendências desagregadoras, que impedem a atuação coordenada e cooperativa dos países.
Estou me valendo, deliberadamente, de palavras fortes e ambiciosas para ressaltar a tremenda oportunidade que se abre para nosso país – não para liderar ninguém, mas para servir a uma causa maior. O Brasil nunca será um país arrogante. Lula também não peca por esse defeito e se mostra, aliás nesse ponto como em outros, tipicamente brasileiro, com notável capacidade de abrigar em si o que temos de melhor como povo. Não vamos nos apresentar, portanto, como candidatos a uma liderança que ninguém nos ofereceu e nem vai nos oferecer. Deixemos essa mania de se apresentar como “líderes mundiais” a nossos amigos dos Estados Unidos que, entra presidente, sai presidente, têm sempre a compulsão de se autoproclamar líderes se não do mundo, pelo menos do Ocidente.
Os europeus sabem desse vácuo mundial, agravado agora pela partida de Angela Merkel. Assim, veem Lula como um aliado na luta contra problemas que transcendem a órbita nacional ou mesmo europeia.
Com Lula na Presidência a partir de 2023, o Brasil recuperará influência e até protagonismo no G-20, nos BRICS, na OMC, na ONU e em outras áreas. A quem possa estar duvidando disso, lembro um fato significativo. Se voltar mesmo à Presidência, Lula será, juntamente com Putin, o único líder dos BRICS e do G-20 que estava presente em 2008 – ano da formação dos BRICS e da transformação do G-20 em foro de líderes. Voltará à cena com uma experiência e vivência desses assuntos todos que quase ninguém mais tem.
Por uma dessas estranhas ironias de que a História está repleta, um país hoje reduzido à condição de pária no mundo, terá em pouco tempo grande presença nas questões que preocupam todos os povos, os europeus, os norte-americanos, os latino-americanos e caribenhos, os asiáticos, os africanos. Presença na questão climática, no enfrentamento das pandemias, na luta contra a fome, a miséria e a desigualdade, na superação dos graves problemas da África, no combate à evasão fiscal dos super-ricos que mandam sua riqueza para paraísos fiscais, e assim por diante. Todos esses problemas dependem da cooperação entre os países, e não podem ser resolvidos no âmbito estritamente nacional, nem mesmo pelas principais potências.
De onde vem toda essa confiança na futura ação internacional do Brasil? Pode perguntar, desconfiado, o leitor ou a leitora. A desconfiança é mais do que justificada, eu sei. Mas, como expliquei nos artigos anteriores acima citados, o que venho escrevendo se baseia não em uma pretensiosa e misteriosa capacidade de antecipar o futuro, mas em vivências. Sintetizo o que disse nesses artigos em uma frase: fui testemunha e participante da ascensão do Brasil no mundo durante o governo Lula e, em menor medida, no governo Dilma. Foi um longo período em que nosso país se mostrou capaz, finalmente, de se comportar à altura das suas dimensões e do seu potencial de atuação no campo mundial. E a contribuição brasileira foi positiva não apenas para nós, mas também para outros países.
Queria acrescentar um aspecto que não mencionei nos artigos anteriores. Quando fui para o exterior trabalhar como diretor executivo no FMI, em 2007, o meu nacionalismo era forte, arraigado, corria no sangue, por assim dizer. Mas tinha algo de estreito, de exclusivista, de brasileiro, apenas brasileiro. Nos mais de dez anos que passaria no exterior, fui me dando conta de que o Brasil irradiava para o resto do mundo, naquele período, uma mensagem diferente e mais ampla. Não era apenas um grande país lutando com unhas e dentes por seus interesses, mas algo mais – uma nação que se mostrava, como nenhuma das demais grandes nações, capaz de acolher generosa e cooperativamente os interesses e as aspirações de outros países, grandes ou pequenos, ricos ou pobres, semelhantes ou diferentes, próximos ou distantes. Fui compreendendo, aos poucos, não por leituras ou estudo, mas nos contatos com países de todos os cantos do planeta, que o projeto nacional brasileiro não podia ser exclusivista, apenas nacional, apenas brasileiro. Que precisaria ser universal.
Assim como Dostoievski profetizou, no século 19, que a Rússia traria uma Palavra Nova para o mundo, assim mesmo com letras maiúsculas – e de fato traria no século 20, como sabemos, ainda que de forma polêmica e tumultuada –, o Brasil parece estar destinado a trazer uma Palavra Nova no século 21. Uma mensagem de cooperação, solidariedade, compreensão e justiça. Mensagem que se faz necessária agora, talvez mais do que nunca, para uma humanidade que se vê ameaçada pela crise climática, por pandemias, por guerras e ameaças de guerra, pela desigualdade e pela miséria em que tantos ainda vivem.
Lula está visivelmente consciente do papel que poderá desempenhar. Veja-se, por exemplo, a abertura do discurso que proferiu no Parlamento Europeu, no dia 15 de novembro. Basta citar a primeira frase: “Eu quero começar falando não da América Latina, nem da União Europeia, nem de algum país, continente ou bloco econômico em particular, e sim do vasto mundo em que vivemos todos nós – latino-americanos, europeus, africanos, asiáticos, seres humanos das mais diferentes origens.”
A extrema direita não está morta
Não quero me empolgar demais. Peço a sua compreensão, leitor ou leitora. Os brasileiros que amam nosso país, depois de anos de intenso sofrimento, estão vislumbrando um reencontro com o futuro e, como no verso de Fernando Pessoa, “rindo como quem tem chorado muito”. Apresso-me, porém, a fazer uma ressalva. Quando falo em “destino” talvez não esteja usando a palavra certa. Melhor seria falar – quem sabe? – em “oportunidade”, ou em “oportunidade histórica”. Mas essas palavras, meio batidas, não têm a carga emotiva do “destino”, a carga emotiva à altura do desafio, imenso desafio, que se abre para o Brasil e que procurei resumir acima.
Seja como for, volto a repetir o que disse em um dos artigos anteriores: nada impede que o Brasil continue infiel a seu destino, chafurdando na mediocridade, na injustiça e no egoísmo. A nossa escolha é entre um destino planetário e a extrema-direita, com Moro ou, o que pareceria mais factível, reelegendo Bolsonaro.
Não vamos nos iludir. O bolsonarismo faz parte de um movimento internacional, que sofreu grande revés com a derrota de Trump em 2020, mas que está longe, muito longe de liquidado. Basta ver o que está acontecendo, por exemplo, no Chile, ou na França e em outros países europeus. Aliás, outro fator que explica a recepção a Lula na Europa é a percepção de muitos políticos europeus de que ele é um aliado importante contra uma extrema-direita perigosa, que conta com apoio expressivo em vários países desenvolvidos.
Crise profunda, recuperação rápida
Vou terminando. Eu sei que muito do que escrevi pode parecer exagerado, extravagante e até fantasioso. Os anos recentes foram excruciantes, não há dúvida. Corroeram nossas energias, abalaram nossas esperanças, talvez de modo irrecuperável. Mas não acredito.
Parece-me importante não alimentar o negativo. Boa parte dos brasileiros, desiludidos de sonhar, dedicam-se agora a cultivar pesadelos, com esmero e carinho. Afirma-se, por exemplo, que a destruição em curso coloca uma tarefa impossível para o País, que o desmonte do aparato estatal irá impossibilitar a ação do novo governo por longo tempo, que a desmoralização internacional do Brasil levará muitos anos para ser superada.
O que mostra, porém, o périplo europeu de Lula? Entre outras coisas, que a recuperação do prestígio brasileiro no exterior pode levar semanas, e não anos. Pode parecer mais uma extravagância da minha parte. Mas é que quanto mais funda a crise, mais rápida e surpreendente pode ser a recuperação. Nem sempre se leva na devida conta a dinâmica própria das crises nacionais e da sua superação. Ao sair de dificuldades avassaladoras, um país encontra de repente energias e meios que nem sabia que existiam. Os primeiros sucessos, ainda que incipientes e pequenos, geram uma recuperação do ânimo e, sem muita demora, vai se consolidando a percepção de que a crise será superada e que, com o sofrimento, muito se aprendeu que nos valerá na fase de regeneração e expansão.
E compreenderemos como é verdadeira a advertência de Nietzsche: “Da escola de guerra da vida – o que não nos mata, nos torna mais forte”. O Brasil sobreviveu e está se aprontando para retomar o seu caminho, o seu destino planetário.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 26 de novembro de 2021.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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