Por Rodrigo Luis Veloso*
A Jamaica viu nos anos seguintes à independência do Reino Unido, em 1962, um grande acirramento político entre os grupos que haviam defendido a soberania nacional. De uma parte, os Trabalhistas, mais conservadores, eram pragmáticos quanto à preservação de institutos econômicos e culturais associados à ordem colonial. Enquanto o Partido do Povo, impulsionado entre outros por Marcus Garvey, pretendia uma agenda de reformas mais profundas, em especial no sentido de eliminar o racismo e seus traços remanescentes.
O acirramento levou ambos os lados a se armarem e, eventualmente, a formarem milícias. Ainda que tenha havia crescimento econômico nos anos seguintes à Independência da Jamaica, o aprofundamento da desigualdade econômica se ampliou no período, com um evidente corte racista, onde os negros da tez escura permaneceriam ocupando os piores postos na divisão do trabalho, e os brancos e mestiços permaneceriam sendo a elite dirigente, gozando do apoio e da simpatia de agentes da dominação estrangeira.
Em 1972, a insatisfação ampla e um movimento contracultural importante, a exemplo do que ocorreu em diversos países da América Latina no mesmo período, levou ao poder Michael Manley, um socialista, do Partido do Povo, o que significou também uma primeira derrota eleitoral das companhias britânicas.
A gestão do Partido do Povo ficaria marcada por nacionalização de empresas e recursos naturais, aumento do salário mínimo, promoção da igualdade de gêneros e afirmação da identidade negra. Fatores externos, como o Choque do Petróleo e o boicote econômico do eixo capitalista dos EUA na Guerra Fria, no entanto, levaram a quedas importantes na economia, gerando sentimento de perda de qualidade de vida nas camadas mais ricas da sociedade e entre um setor da classe média.
Em outras palavras, as políticas sociais, com reforma agrária e aumento do salário mínimo, proporcionaram entre os mais pobres uma perspectiva radicalmente diferente sobre a situação do país com relação à elite, cuja capacidade de dispor do trabalho “barato” e de condições de reproduzir um estilo de vida “europeu” se deterioraram rapidamente. Essa situação levou a um choque crescente, que culminou em trocas de tiro até sob a luz do dia em regiões centrais da capital Kingston, e o país mergulhou na Guerra Civil.
O saldo do conflito, ainda por se tratar de um período de queda na economia e boicote americano, foram milhares de mortes e um aumento considerável da pobreza. A espiral de deterioração e catástrofe humanitária seria interrompida só em 1978, quando líderes das principais gangues rivais resolveram, finalmente, cooperar para produzir um armistício e resolver os grandes problemas sociais da Jamaica.
Claudie Massop, pelos Trabalhistas, e Aston Bucky Marshall, pelo Partido do Povo, passaram a organizar um grande concerto musical que teria a finalidade de, através da música, reunificar o país e fortalecer o pertencimento comum. Eles viajaram a Londres e convenceram o artista jamaicano de maior sucesso, Bob Marley, que vivia então em exílio, a retornar ao país e ser a atração principal do evento, que misturava arte e política para promoção da unidade nacional.
Os preparativos totais duraram meses. O show ficou separado em uma primeira parte para artistas de reconhecimento mais local, e outra para os grandes nomes da cena do Reggae. Para esta ocasião, especificamente, Marley compôs a música “One Love”, que também se tornou o nome do concerto (acrescido aí da expressão “show pela paz”).
Em 22 de abril de 1978, exatamente às 17 horas, teve início o evento que alguns estudiosos chamaram de “Woodstock do Terceiro Mundo”. Ou, para outros, o maior festival panafricanista da história.
A abertura ficou a cargo da princesa Asfa Wossen, herdeira do trono da Etiópia, que para cultura rastafari representava a profecia bíblica da encarnação de Jah (D"us) entre os humanos e na África. Na filosofia panafricanista do movimento rastafari, Babilônia é uma menção dos profetas ao cerco sobre os israelenses na cidade de mesmo nome na Mesopotâmia, durante a invasão pelo Império Romano, e simbolizava ao mesmo tempo o cerco aos negros em diáspora no Ocidente, onde sua cultura era “contaminada” e “deturpada” por valores típicos da dominação colonial e racista. Neste sentido, a devoção à Coroa Etíope representa não só a ligação do movimento contracultural jamaicano com as ideias de “uma só África”, mas também à devoção espiritual de responsabilidade compartilhada entre o povo negro em suas diversas localidades e subdivisões. Etiópia, cuja bandeira empresta as cores às bandeiras rastafari e da UNIA (de Garvey), é a materialização de uma sociedade de africanos sem divisões sectárias, conflitos e planejando o seu progresso científico e econômico sob uma só liderança, apontada conforme a tradição dos seus antepassados.
Às 19 horas e poucos minutos, no clímax do evento, que levou hordas de pessoas às ruas e pôs toda Ilha a cantar e dançar no mesmo instante, Bob Marley convidou os líderes de ambos os partidos principais da Jamaica ao palco, e ergueu os braços deles, forçando um aperto de mãos diante de uma audiência sem precedente. O gesto, entoado sob melodias que culpavam o colonizador pelas disputas entre os negros, como se nota em músicas como “Lion of Judah”, “Natural Mystic” e “Jah Live”, ecoaram uma mensagem poderosa nos dias seguintes, e significaria uma dissuasão nas disputas de gangues, e a proliferação de grupos que defendiam a não violência.
“One Love” parou a guerra civil na Jamaica.
Bob Marley, como maior intérprete da cultura rastafari de então, que inovou por sua vez dentro do protestantismo ao apresentar um messias negro e o povo etíope como aquele escolhido para receber as escrituras sagradas no Reino de Davi, fez em Kingston sua performance mais importante, que também foi uma declaração de rejeição espiritual ao conflito entre as pessoas negras, relacionando o desejo pela sua irmandade e união com a profecia bíblia de retorno de D"us ao mundo.
*Rodrigo Luis Veloso é sociólogo e pesquisador na Universidade Federal Fluminense.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.