Sapatos nº 43, “recheado de verdinhas”: “me digas o que calças, que eu te direi quem és”

A aula de Jair Bolsonaro sobre como pedir propina, por meio de dinheiro enfiado em sapatos, fez-me recordar o desfile da Unidos de Porto da Pedra no carnaval de 2013

Ilustração: DGC
Escrito en DEBATES el

Por Estevan Mazzuia*

“Pra mim é fácil: ‘manda um sapato 43 pra mim, meu número aqui, tá? Um beijo’. Pronto, resolveu o problema. Chegava um sapato número 43 cheio de notinha de 100 verdinha dentro. Quanto você acha que vale a vaga pro... Presta atenção, pessoal! Quanto você acha que vale a vaga para o Supremo Tri...”.

E foi em meio a essa fala que o governo de Lula acabou. Ao ser pego no flagra, sem saber que sua fala estava sendo transmitida ao vivo, Lula não apenas deu uma aula sobre um meio bastante eficaz para receber propina, como deixou evidente que a vaga de ministro do STF está à venda. Bom, Lula não mencionou as palavras “Tribunal Federal”, é verdade. Interrompeu-se no “tri...”. Se não fosse Lula, a gente poderia facilmente concluir que se trataria do Supremo Tríduo Momesmo. Uma vaga para pular o carnaval. Ou poderia ser o Supremo Triciclo. Triângulo. Saberíamos que há vagas no triciclo e no triângulo, assim como, por acaso, há no STF. Em se tratando de Lula, não há dúvidas: a vaga que está sendo negociada por baixo dos panos, ou por dentro de sapatos, é a de Marco Aurélio Mello no STF.

E ante uma comoção nacional e internacional, Lula baixou a cabeça e, envergonhado, renunciou ao cargo.

Bom, não foi Lula quem proferiu a fala que abre a coluna desta semana, então, sem novidades. Segue tudo como dantes no quartel de Abrantes. O desgoverno federal conseguiu promover a banalização do absurdo, adquirindo o direito de fazer o que quiser com o Brasil. Viva a esculhambação. Como diria Galvão, virou passeio.

Imediatamente recordei-me de um desfile de carnaval que falava sobre a questão identitária que recai sobre os calçados: sandálias, botas, chinelos, tamancos, sapatos, tênis e sapatilhas podem revelar muito sobre aquele que os calça. Assim como uma caixa de sapatos, com um par deles recheado de dinheiro, pode revelar muito sobre quem a envia, e quem a recebe, principalmente em se tratando de política, e de cargos à venda.

Com dois mil componentes, distribuídos em 21 alas e quatro alegorias, a Unidos do Porto da Pedra foi a segunda escola a entrar a Sapucaí no dia 08 de fevereiro de 2013. Naquele ano, o grupo de acesso foi denominado Série A, e reuniu 19 escolas, que formavam a segunda e a terceira divisão, até 2012, ano em que a agremiação de São Gonçalo acabou rebaixada, depois de onze temporadas no grupo especial. Oriunda do grupo “de cima”, portanto, a escola entrava como uma das favoritas ao título, mas sofreu com o horário de desfile: sexta-feira, começo da noite, e o trânsito infernal para se deslocar em meio a uma metrópole às vésperas do feriado carnavalesco.

O enredo “Me digas o que calças, que eu te direi quem és”, desenvolvido por Leandro Valente, tinha um primeiro setor intitulado “O paraíso, segundo as mulheres”. Na comissão de frente, Cinderela escolhia entre as diversas opções de sapato que lhe eram apresentadas. A lenda dos sapatos de ouro do faraó, que inspiraram a história de Cinderela, era representada no primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira. No carro abre-alas, 500 pares de sapatos doados pela comunidade representavam o paraíso de joias raras e exclusivas para os pés.

O segundo setor abordava a evolução histórica dos calçados: do homem pré-histórico buscando proteção para os pés, passando pelas soluções egípcias, gregas e romanas, nas quais os pés ainda ficavam parcialmente expostos, até a Idade Média, na qual os primeiros sapatos fechados foram desenvolvidos. Os calçados especiais para guerras, como botas e galochas, também foram mencionados. Fechando o setor, uma alegoria representava o gesto de Carlota Joaquina ao embarcar de volta à Europa, batendo os sapatos: “desta ‘avenida’, não levo nem o pó”!

O imaginário dos calçados foi lembrado no terceiro setor: as sandálias voadoras de Hermes, os sapatinhos vermelhos que Doroth calça no mundo de Oz, as botas do gato “de botas”...

Os 270 ritmistas, comandados por Mestre Thiago Diogo, representavam o apresentador Jacinto Figueira Júnior, falecido em 2005, que se eternizou como “O Homem do Sapato Branco’.

Os passistas calçavam os tradicionais bicolores, indissociáveis do malandro que se preza; e as sandálias de prata de salto alto, das mulheres que têm samba no pé.

As plataformas de Carmen Miranda estavam presentes em uma ala; outra fazia uma homenagem específica aos sapateiros.

A crítica social apareceu na ala dos descalçados, numa alusão carnavalesca aos que nada têm: a ausência de sapatos representando a falta de orgulho e de identidade. Os foliões vestiam trapos negros, formando um conjunto que era uma referência bem explícita aos mendigos de Joãosinho Trinta no carnaval de 1989 (que muito merece uma resenha por aqui). Atrás deles, uma alegoria igualmente escura, intitulada “a ralé é descalçada, mas o diabo veste Prada”, com uma diaba alçada, em posição de destaque, comandando a injustiça e representando a elite que se alimenta da pobreza alheia.

No último setor, foram homenageados os povos indígenas, descalços por opção, os punks e os hippies, com seus estilos peculiares, e os calçados de couro nordestinos. Não ficaram de fora a comunidade LGBTQIA+, as madames e as peruas, que depositam em seus calçados os traços de suas personalidades.

A mensagem final do desfile era: “não julgue pelo solado: cada um calça o que quer”, título da última alegoria da escola. Afinal, é possível um mundo onde não sejamos julgados pelo que usamos ou calçamos, mas pelo que somos; que cada um tenha a liberdade de calçar e ser o que quiser, sem preconceito.

Puxado por Igor Vianna, o samba composto por Bira, Duda SG, Márcio Rangel, Miguelzinho, Porkinho e Wilson Bizzar, dizia:

“É carnaval, hoje vou revelar / Porto da Pedra é o meu eterno par!

Pego meu chinelo novo, quero me perder no povo / Deixa a vida me levar!”

Com 297,4 pontos, a escola terminou em um decepcionante nono lugar, e ficou longe do sonho de voltar a desfilar entre as grandes. Sonho perseguido até hoje. Mas, a julgar pelos três terceiros lugres nos últimos carnavais, o sonho pode estar próximo de virar realidade.

Já o sonho de vermos um Brasil livre de corrupção, injustiça e desigualdade parece ter se tornado um interminável pesadelo, acondicionado em caixas de sapatos nº 43.

Como se não bastasse, estamos em uma situação de isolamento nunca antes vista. Lula nos envergonhou em Roma, na cúpula do G20, fazendo piadinhas com garçons e contando mentiras a Erdogan, com aquele sorriso de chimpanzé excitado. Nem vai aparecer na COP26. Optou por fazer turismo na Itália e homenagear, ao lado de Matteo Salvini, um fascista devoto de Mussolini, pracinhas brasileiros que deram a vida na Itália para livrar o mundo... do fascismo!

Ah, esse Lula...

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.