O (novo) Salvador da Pátria: vendeu-se o Brasil, num palanque da praça

As primeiras pesquisas após a filiação de Sérgio Moro ao Podemos já o colocaram em terceiro lugar em intenções de voto para presidente em 2022. Logo pensei no desfile do Paraíso do Tuiuti em 2019

Ilustração: DGC
Escrito en DEBATES el

Por Estevan Mazzuia *

Quando alguém afirma, enfaticamente, ser um “cidadão de bem”, ou não ser nem de esquerda, nem de direita, eu consigo traçar, com razoável segurança, o rol de seus candidatos nas eleições presidenciais do período da redemocratização:

Em 1989, cheio de esperança, votou no Collor, contra a ameaça comunista;
Em 1994, decepcionado, votou no FHC, contra a ameaça comunista;
Em 1998, resignado, votou no FHC, contra a ameaça comunista;
Em 2002, com medo de o Brasil virar uma Venezuela, votou no Serra;
Em 2006, com medo de não mais poder fazer churrasco todo final de semana, votou no Alckmin;
Em 2010, com medo de não mais poder viajar para o exterior, votou no Serra, de novo;
Em 2014, desejando voltar a fazer churrasco todo final de semana, e viajar para o exterior, votou no Aécio;
Em 2018; com medo, de novo, de o Brasil virar uma Venezuela, e da ameaça comunista, votou em Bolsonaro.

E, com a mesma segurança, afirmo que, em 2022, decepcionados, mas cheios de esperança, contra a ameaça comunista, com medo de o Brasil virar uma Venezuela, para voltarem a comer churrasco e viajar para o exterior, como faziam entre 2003 e 2010, integrará o eleitorado de Sérgio Moro.

Sim, o juiz que afirmava que sua parcialidade na Lava-Jato nunca teve interesse político, que largou a magistratura para integrar o governo de um presidente que talvez não tivesse sido eleito sem sua intervenção judicial, filiou-se ao Podemos, partido sem qualquer viés ideológico, que abraçou a Lava-Jato, bem como Deltan Dallagnol, o ex-Procurador da República e especialista em PowerPoint, que armava, por baixo dos panos, a condenação do ex-presidente Lula e a criação de um fundação privada, fomentada com verba oriunda de um acordo entre a Petrobras e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

Quando o assunto é superação em termos de cara-de-pau, eles respondem: sim, podemos!

Desenvolvido por Jack Vasconcelos, ainda sob o transe do período eleitoral de 2018, que deu nessa barafunda em que o Brasil se transformou, o enredo “O Salvador da Pátria” foi levado à avenida em 2019 pelo Paraíso do Tuiuti, escola que passou boa parte de sua existência nos grupos de acesso do carnaval carioca, até o surpreendente vice-campeonato em 2018, com um desfile arrebatador.

Os 3200 componentes, divididos em 29 alas, 5 alegorias e 2 tripés, ajudaram a contar a história do bode Ioiô, que fugiu da seca de 1915, do interior para a capital cearense, onde “passava o dia ruminando poesia” e, com seu bafo, “perfumava a boemia”.

A fuga do sertão, a precariedade da existência, o calor abrasador e a secura do sertão foram apresentados no primeiro setor do desfile, em tons fortes de amarelo e vermelho.

A comissão de frente era uma síntese do enredo, retratando a insatisfação popular com seus políticos, a eleição de Ioiô para a Câmara Municipal de Fortaleza, e a impossibilidade de exercer o cargo, para a tristeza de seu eleitorado, que segue em busca de um Salvador da Pátria.

Um tripé “pede-passagem” trazia o bode como o leão da Metro, com a coroa, símbolo da escola, sobre a cabeça.

A força do sertanejo, tão exaltada por Euclides da Cunha, estava representada na velha-guarda, logo à frente do carro abre-alas, intitulado “A Travessia do Sertão”, com esculturas inspiradas na obra do pinto cearense Chico da Silva.

As baianas representavam as Mães do Alagadiço, a resistência das mulheres em espécies de campos de concentração construídos na periferia de Fortaleza, com o fim de conter os retirantes, mantendo-os afastados da elite moradora da capital.

Ioiô, porém, conseguiu se livrar e chegou em Fortaleza, deparando-se com novas tonalidades, do verde do mar ao colorido da fartura litorânea.

Foi comprado por José de Magalhães Porto e se tornou mascote na Rossbach Brazil Company, empresa britânica que comercializava couros, peles, sementes de algodão e borracha, da qual era correspondente o empreendedor Delmiro Gouveia.

Circulava livremente pela cidade, sendo logo adotado pelos fortalezenses. À tarde, sassaricava com artistas e intelectuais nos arredores da Praça do Ferreira, que tratavam Ioiô como a reencarnação do poeta Paulo Laranjeira, servindo-lhe charutos e bebidas, até que Ioiô “botasse o boneco”, ou seja, ficasse deliciosamente embriagado. Devido a esse “vai-e-vem” o caprino recebeu sua alcunha.

A bateria de Mestre Ricardinho, “SuperSom da Tuiuti” vestia a fantasia de “dândi sertanejo” dando ao bode toda a elegância que lhe era atribuída pelo imaginário popular.

Um setor da escola era todo dedicado aos cenários que emolduravam os passeios de Ioiô, influenciados pela Belle Époque, que integraram o que se conheceu como “aformoseamento alencarino”.

Uma ala aludia a uma curiosidade: durante a presença de militares norte-americanos em Fortaleza, as meninas mais afoitas na arte de receber galanteios pelos espaços públicos da cidade ouviam: “She’s pretty cute”. O povo logo adaptou a expressão, que virou “ispilicute”. Ioiô se encantava com as cadelinhas poodle que passeavam pela cidade com suas donas: as “lulus” eram, para Ioiô, “ispilicute”.

Uma alegoria mostrava, na parte de trás, as mazelas que o aformoseamento alencarino, na parte da frente, procurava esconder.

Eis que chegam as eleições. Os coronéis usavam suas fortunas para garantir seus privilégios, manipular a população, comprar votos. Cansados de tudo isso, o povo elegeu Ioiô como o mais novo edil (o que era possível, pois as cédulas eram de papel) tal qual ocorreria anos mais tarde com o rinoceronte Cacareco (uma fêmea, na verdade), em São Paulo, e o macaco Tião, no Rio (na verdade um chimpanzé, que recebeu 400 mil votos para prefeito, ficando em terceiro lugar no pleito).

Porém, a despeito de toda a fauna que ocupava cargos públicos (porcos, baratas, aves de rapina, cobras e ratos), representada em outro carro alegórico, Ioiô não pôde assumir, para a tristeza geral.

Tal qual a população cearense do começo do século XX, a população brasileira segue em busca de seu Salvador da Pátria, seja como forma de protesto, seja como aquela ingênua esperança que marca a escolha do “cidadão de bem”, “nem de esquerda, nem de direita”, que abre esta coluna.

No último setor do desfile, uma ala simbolizava o conflito entre o bode da resistência e as coxinhas ultraconservadoras. Segundo a escola, “há de surgir sempre um novo Ioiô, irreverente e popular, como forma de “bodejar” contra o sistema”.

Encerrando o desfile, a alegoria “O auto de Ioiô: a Resistência”, trazendo o bode Ioiô dando um coice em um quadrúpede “repressor”. Nas laterais, esculturas simbolizavam aparelhos celulares onde se liam mensagens como “racismo não existe, não importa sua cor”, “Deus acima do todos, mas sou a favor da tortura” e “Se empregada estudar, quem vai limpara a casa pra mim?”.

Ainda na concentração, partes dessa alegoria começaram a de descolar e tiveram que ser retiradas. Para que não ocorressem buracos na avenida, o desfile ficou parado por alguns minutos; depois, para que não houvesse estouro no tempo de desfile, a escola teve que correr, o que custou alguns décimos no quesito evolução. Com 268,5 pontos, a agremiação de São Cristóvão terminou em um honroso 8º lugar.

Composto por Moacyr Luz, Cláudio Russo, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal, e puxado por Celsinho Mody e Grazzy Brasil, o samba enredo tinha versos geniais:

“Vendeu-se o Brasil num palanque da praça / E ao homem serviu ferro, lodo e mordaça…
Vendeu-se o Brasil do sertão até o mangue / E o homem servil verteu lágrimas de sangue
(…)
Passava o dia ruminando poesia / Batendo cascos no calor dos mafuás
Bafo de bode perfumando a boemia / Levou no colo Iracema até o cais
(…)
Ora, meu patrão, vida de gado desse povo tão marcado / Não precisa de dotô
Quando clareou o resultado / Tava o bode ali sentado aclamado vencedor
Nem berrar, berrou, sequer assumiu / ‘Isso aqui iô iô é um pouquinho de Brasil’ ”

Por menos Collors, FHCs, Serras, Alckmins, Aécios, Bolsonaros, Moros e afins…

A salvação da pátria não virá por outro que não um novo Ioiô, de preferência “botando o boneco”.

E tenho dito!

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.