Por Marco Piva*
O entusiasmo com a revolução sandinista me levou à Nicarágua logo após o triunfo contra a ditadura de Anastácio Somoza. Ali passei cinco anos da minha juventude realizando cursos de formação e comunicação nas organizações populares. Sem medo de errar: apesar dos perigos e incertezas, foram os melhores anos da minha vida. Naquele país nasceu meu primeiro filho.
Também fui representante do Partido dos Trabalhadores junto à Frente Sandinista de Libertação Nacional e fiz parte do coletivo de brasileiros e brasileiras que lá estavam ajudando na reconstrução de uma nação destruída pela guerra civil que matou milhares de pessoas.
Aliás, o PT se destacou desde o início da revolução pela sua enorme capacidade de oferecer solidariedade a um povo sofrido e arrasado materialmente. Organizou e enviou para a Nicarágua uma brigada de profissionais da saúde que enfrentaram as mais difíceis situações de trabalho.
Décadas depois não consigo enxergar a revolução que vivi e senti. Daniel Ortega é uma espécie de sombra que vagueia em torno do grande chapéu de Augusto Cesar Sandino, o grande inspirador das lutas pela soberania do país. Em seu desabrido apego ao poder, é eleito para um quarto mandato consecutivo onde seus principais adversários estão presos e a oposição cada vez mais reprimida. Não, não falo de adversários do campo da direita. Antigos dirigentes e militantes sandinistas passam seus dias atrás das grades, muitas vezes sem acesso a advogados e familiares. Entre as presas, muitas líderes feministas e ativistas de organizações de mulheres.
A pergunta que não quer calar: tem a esquerda o dever de denunciar esta situação análoga ao regime que os sandinistas derrubaram em 1979 ou é hora de passar pano em nome de uma igualmente verdadeira tentativa de derrotar Ortega e o seu governo? Até que ponto a histórica interferência dos Estados Unidos na Nicarágua deve ser uma desculpa para o silêncio diante de constantes violações dos direitos humanos?
A pergunta é incômoda, mas a resposta, pelo menos para mim, não é: onde existir um regime que viole os direitos humanos e a liberdade de expressão, estarei do outro lado da rua. Da mesma forma que defendo que cabe aos próprios nicaraguenses decidir sobre o seu futuro, sem qualquer tipo de ingerência externa. A soberania e a autodeterminação dos povos são valores inegociáveis.
As eleições de 7 de novembro não foram legítimas nem democráticas e muito menos transparentes. Não assistiram a elas observadores internacionais neutros. Governos rechaçaram a sua realização, entre eles alguns de esquerda. A exigência de mostrar o “dedo borrado” foi um ataque ao exercício da cidadania.
A secretaria de Relações Internacionais do PT divulgou nota saudando a realização das eleições na Nicarágua e a vitória de Ortega e sua esposa. Felizmente, a presidenta do partido, Gleisi Hoffmann, desautorizou a nota argumentando que não houve decisão partidária. Ela ainda foi ao ponto: é preciso que governo e oposição respeitem a democracia e que seja respeitado o direito à autodeterminação.
Diante disso, é possível ver que não basta um discurso anti-imperialista e de apoio aos mais pobres para gabaritar o quanto se é de esquerda. Ser esquerda é muito mais que isso; é assumir posições de solidariedade como foi feito nos primeiros tempos da revolução sandinista e também denunciar quando traidores dos mais nobres ideais da humanidade se transformam em algozes de seu próprio povo.
Romper com o passado não é o caso. O passado lá está, registrado na história que ninguém apagará. Jovens revolucionários tiveram coragem e muitos deles deram suas vidas para libertar o povo da opressão somozista. Mas, isso não dá o direito a certos líderes formados na esquerda de envelhecerem as ideias e os sonhos da juventude atual. Que façam isso sozinhos e que paguem pelas consequências de suas vaidades anacrônicas.
*Marco Piva é jornalista e apresentador do programa Brasil Latino na Rádio USP e na Rádio Brasil Atual.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.