A história das mulheres - Por Maria Carolina Medeiros

"Temos nossos nomes apagados, nunca tivemos direito à História, mas continuaremos fazendo o que agora podemos: escrevendo a história das mulheres. Lutando pela história das mulheres. E para que mulheres não sejam apenas história"

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Por Maria Carolina Medeiros*

Mulheres passam a vida aprendendo sobre a história dos homens, sinônimo da história universal. Somos designadas por nomenclaturas nas quais o masculino nos engloba: se há dez mulheres e apenas um homem, já é o suficiente para se dizer “eles”. E quando o dizemos, perdemos a possibilidade de saber: há mulheres neste grupo? Quantas são? Que protagonismo têm?

Na estrutura patriarcal são homens (guardados os recortes de raça e classe) que escrevem sobre todos os assuntos. Os escritos das mulheres ainda hoje são vistos como “literatura feminina”. A ideia de que somos um ser inferior, como pensava Aristóteles, ou o segundo sexo, não parece tão ultrapassada; nominar assim levanta a questão: quem iria querer ouvir/ler mulheres se não outras mulheres? Não à toa o livro de Simone de Beauvoir continua atual, 72 anos depois de ter sido publicado pela primeira vez, em 1949. O próprio pai de Beauvoir dizia que ela tinha “cérebro masculino”, e não era exatamente um elogio. Sua irmã Heléne era celebrada por sua beleza e docilidade, isso sim era ser mulher.

Dados de 2019 do IBGE compilados pelo site Pindograma mostram que para cada rua que homenageia uma mulher, há quatro que homenageiam homens. Há nas ruas do país pouco mais de 170 mil homenagens a mulheres, contra quase 700 mil homenagens “neutras” (plantas, objetos, datas) e quase 800 mil homens homenageados. Dentre eles, feminicidas: políticos, militares, escritores e tantos outros que mataram mulheres e tiveram como prêmio o enaltecimento da reputação sem uma linha sequer sobre as vítimas. Sumimos do convívio, depois somos apagadas da História. É a história das mulheres.

Como aponta Beauvoir, o homem nasce sujeito; a mulher precisa tornar-se (sim, a famosa frase “não se nasce mulher, se torna mulher”, é sobre isso). Sempre fomos o Outro, cuja existência é sustentada pela feminilidade, que somos levadas a desenvolver com a finalidade de agradar o homem - sujeito a quem nossa existência está condicionada. É a história das mulheres. Somos socializadas assim: na estrutura patriarcal são homens que mandam, que decidem sobre nossos sobrenomes, sobre nossos corpos, sobre se estudamos e trabalhamos, quanto ganhamos e quantos filhos teremos. É a história das mulheres.

A duras penas votamos, chegamos ao mercado de trabalho. Mas continuamos em situação de desvantagem: Beauvoir aponta que mesmo ante o avanço do feminismo e o encorajamento ao estudo, da mulher sempre exige-se outro tipo de realização: que antes de tudo ela SEJA uma mulher, que não perca sua feminilidade. A oposição entre o trabalho fora do lar e feminilidade como algo que não combina é histórica, e vemos as marcas até hoje. Foi apenas em 1962 que criou-se o Estatuto da Mulher Casada, que mesmo com este nome, relacionando a mulher ao seu estado civil, passou a lhe conferir alguma emancipação na vida conjugal, possibilitando-lhe exercer uma profissão sem autorização do marido.

Mesmo em tempos em que ganhava força o discurso da emancipação feminina, como no pós-guerra, à mulher que trabalhasse fora caberia desempenhar papéis que não rivalizassem com o do “chefe da casa”. Claro, se a vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica são marcas de feminilidade, fora do recinto do lar a mulher ideal deveria se preocupar em não “embrutecer”, como mostra a pesquisadora Carla Bassanezi.

Tendo a língua dimensão política, com o poder de “criar, fixar e perpetuar relações de poder e violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade”, como mostra Grada Kilomba, é preciso cautela, pois os termos importam. É através das terminologias que a língua nos informa constantemente quem representa a verdadeira condição humana, segundo ela. É a história das mulheres.

A historiadora Michelle Perrot aponta que a língua contribui para o apagamento da história das mulheres: “eles dissimula elas”. Nos lembra que no caso de greves mistas ignora-se quase sempre o número de mulheres, que as estatísticas são quase sempre assexuadas, que a perda do sobrenome ante o casamento impossibilita reconstituir linhagens femininas. É a história das mulheres.

Não é uma história divertida de contar. É violenta. É apagada. Mas é a história das mulheres. Temos nossos nomes apagados, nunca tivemos direito à História, mas continuaremos fazendo o que agora podemos: escrevendo a história das mulheres. Lutando pela história das mulheres. E para que mulheres não sejam apenas história.

* Maria Carolina Medeiros é professora, pesquisadora da socialização feminina, doutoranda em Comunicação na PUC-Rio

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum