“Taca fogo no rabo de quem nada faz”: um enredo pandêmico surge para 2021

Na coluna de hoje, Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, traça perspectivas para 2021 a partir do desfile da Beija-Flor de Nilópolis em 1.990

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Por Estevan Mazzuia *

Cá estamos, na primeira coluna do novo ano... E da nova década. Ao menos oficialmente, uma vez que, para muitos brasileiros, o ano só começa após o carnaval. Se for verdade, teremos um ano mais curto. Talvez o ano termine mesmo sem ter começado, inclusive. 

Todo santo ano (com o perdão do trocadilho), o carnaval ocorre 47 dias antes da Páscoa. O Domingo de Páscoa é o primeiro após a primeira lua cheia a partir do equinócio do outono, no hemisfério sul. Isso explica porque o carnaval ocorre quase sempre em fevereiro, às vezes em março, mas não explica por que pode ocorrer em julho, ao menos em relação aos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo. 

A propósito, carnaval origina-se do latim “carne vale”, o “adeus à carne” que precede o jejum quaresmeiro. Há quem discorde, defendendo uma origem italiana: “carne levare”, algo como “remover a carne”, alimento proibido nos 40 dias anteriores à Páscoa. 

Quem acompanha de longe sabe que o desfile das escolas do Rio de Janeiro é um espetáculo, um dos carros-chefes do turismo carioca e nacional. Quem acompanha de perto sabe que a festa paulistana, a despeito de não ser revestida do mesmo glamour, dá de goleada em termos de organização. Mas isso é tema para outra discussão. 

Pois bem... O tal do novo coronavírus, na prática, “empurrou” o equinócio do outono lá para agosto, em pleno inverno, pra não atrapalhar Pedro, Antônio e João. A bem da verdade, tamanha foi a preocupação com os três santos que jamais se cogitou realizar os desfiles em junho. Maio ou julho, previam. Mas as escolas de samba paulistanas e cariocas, que desfilariam entre 12 e 16 de fevereiro de 2021, por determinação dos astros, deverão desfilar mesmo em julho, por determinação dos homens e imposição da Covid-19. Se o fizerem. 

A despeito de as escolas desfilarem por pouco mais de uma hora, a preparação de um desfile começa, costumeiramente, pouco depois da Quaresma, com a divulgação do tema e, depois, da sinopse do enredo (como o tema será abordado). No inverno, geralmente, ocorrem os concursos para a escolha do samba e, na primavera, começam os ensaios, que ferverão mesmo durante o verão (ah, como adoro um trocadilho barato...). Há, também, a construção das alegorias e a confecção das fantasias, em galpões não tão amplos quanto deveriam e com muito mais gente do que comportam. Ou seja, “escola de samba” e “aglomeração” são expressões indissociáveis e os preparativos para 2021 praticamente parados (embora quase todas as agremiações tenham escolhido seus enredos e, muitas, seus sambas, em concursos “virtuais”). 

Resta saber como os foliões lidarão com as temperaturas em julho. As indumentárias “simbólicas” resistirão ao inverno paulistano? E o carioca, que não sai de casa sem casaquinho quando o termômetro indica menos de 30?C? 

Impossível não lembrar de um dos maiores carnavalescos de todos os tempos, o saudoso Joãosinho Trinta. Em 1.989, durante o antológico desfile “Festa Profana”, da União da Ilha do Governador, a modelo Enoli Lara desfilou como veio ao mundo em um carro alegórico que louvava Baco (daí, bacanal...). Foi o primeiro nu frontal na Sapucaí e suficiente para a “ala conservadora” da organização do espetáculo vetar, a partir do carnaval de 1.990, a “genitália desnuda”, expressão que certamente teria frequentado os “trend topics” à época, se fosse possível. E o malandro João, responsável por um catártico desfile da Beija-Flor de Nilópolis ainda naquele 1 989, desenvolveu o mítico “Todo Mundo Nasceu Nu” em 1990, com direito a uma alegoria que trazia Lula, Brizola, Batman e Napoleão, bebês, de “pipi” de fora. 

Abordava-se a relação da humanidade com os sete pecados capitais, apontando para a flagrante tendência humana à corrupção. O atualíssimo samba de Betinho, Jorginho, Bira e Aparecida afirmava: 

“Vestiu a frente

Cobriu atrás

Por baixo dos panos

Sacanagem...” 

Um folião jazia dentro da boca de um enorme dinossauro no carro abre-alas. Poderíamos facilmente traçar um paralelo entre nós (o folião) e o dinossauro (2021, ou o atual desgoverno federal, tanto faz). Na sequência, o eterno Jorge Lafond vinha sobre um vulcão, vestido com um tapa-sexo em formato de preservativo decorado, que evidenciava a silhueta dos “barangandãs” do rapaz. Joãosinho dera um jeito de vestir a genitália, deixando-a à mostra! O desembarque da corte portuguesa no Brasil em 1.808 foi simbolizado por uma caravela repleta de travestis e transformistas. Injusta comparação com eles (os destaques) Em um setor, integrantes empunhavam faixas com dizeres como “E o palhaço, quem é?” ou “Senhor, por que não posso?”. Um disco voador encerrou o cortejo, como que indicando a esperança em um local bem distante... E olha que em 1.990 a Terra ainda nem era plana! 

Infelizmente, o delírio de Joãsinho não foi bem compreendida pelos julgadores. A escola levou notas 7.0, 9.0, e 10.0 no quesito enredo, sendo penalizada, ainda, em evolução, samba-enredo e comissão de frente. Como as notas mais baixas de cada quesito eram descartadas, conseguiu repetir o vice-campeonato de 1.989, ficando atrás apenas da Mocidade Independente de Padre Miguel.

Que falta faz João! Que falta fará em 2021, onde a tal “genitália desnuda” seria não apenas um ato de bravura contra as baixas temperaturas esperadas na avenida, mas um ato de resistência contra o sistema. Ou, como diria Bolsonaro - O Parvo - contra o “ishtábiche”. Aliás, em matéria de pecados capitais, Bolsonaro e seus “acepipes”, como disse o semianalfabeto ex-antiministro da Educação, entendem muito bem. Podem até tentar disfarçar, mas só enganam seus torcedores (embora eu acredite que estes finjam ser enganados). Ah, que vontade de cantar com aquela Beija-flor de 1.990: 

“Toca fogo no rabo de quem nada faz / eu sou povo e me acabo e não aguento mais!”

*Estevan Mazzuia, o Tuta do Uirapuru, é biólogo formado pela USP, bacharel em Direito, servidor público e compositor de sambas-enredo, um apaixonado pelo carnaval.