Por Uallace Moreira Lima e William Nozaki *
O encerramento definitivo das atividades da Ford reacendeu o debate sobre a questão industrial no Brasil. Para os porta-vozes do governo a saída da primeira empresa automobilística instalada nestas plagas não tem nenhuma relação com a situação política, econômica e jurídica do país, e se deve exclusivamente a decisões empresariais microeconômicas. Já para os porta-vozes do mercado, a causa do problema seriam os altos custos tributários, trabalhistas e incertezas jurídicas que elevariam o Custo-Brasil.
Nos dois casos se esconde o fato de que nem o teto dos gastos, tampouco as reformas trabalhista e previdenciária, ou as medidas de abertura econômica, lograram êxito em sustentar a confiança do empresariado como supunham os adeptos do neoliberalismo. Nenhuma dessas reformas impediu que, ao iniciar o ano, a Ford fizesse seu balanço e concluísse que produzir e vender carros no Brasil de Bolsonaro se tornou muito mais arriscado do que, por exemplo, na Argentina ou no Uruguai, países onde a empresa não só manterá como ampliará seus investimentos a despeito da pandemia.
O mesmo já havia acontecido com a Mercedes-Benz em 2020 e pode se repetir com outras montadoras como a Volkswagen, em 2021, que também já anunciou um novo plano de demissão voluntária, evidenciando a ineficiência da atual política na promoção de mais investimentos e maior competitividade.
O atual cenário de encolhimento contrasta com o período de dinamismo porque passou a indústria automobilística no Brasil, principalmente entre 2004 e 2013, momento em que o crescimento econômico fez com que a produção de autoveículos apresentasse uma taxa média de crescimento de 7,8%. Essa expansão foi determinada, predominantemente, pela dinâmica do mercado interno, dado que a participação das exportações como proporção total da produção de autoveículos saiu de 35,5% em 2005, para 15,8% em 2013. Como contrapartida, a participação do mercado interno como destino da produção de autoveículos saltou de 64,5% em 2005 para 84,2% em 2013. Nitidamente o que dinamizou o mercado de automóveis no Brasil foi a expansão do mercado interno.
A participação da indústria automobilística no PIB industrial aumentou de 14,6% em 2004 para 18,7% em 2012. O faturamento líquido saiu de US$ 22 bilhões em 2004, para US$ 87 bilhões em 2013. O número de empregos gerados saiu de 89 mil em 2004 para 135 mil em 2013. No ranking de produção mundial de autoveículos, o Brasil ficou na 7º posição entre os maiores produtores em 2013.
Em 2012, o governo Dilma Rousseff (PT) anunciou o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores, o Inovar-Auto, com vigência até 2017. O principal objetivo do programa era criar condições de competitividade e incentivar as empresas a fabricar carros mais econômicos e mais seguros, investir na cadeia de fornecedores e em engenharia, tecnologia industrial básica, pesquisa e desenvolvimento e capacitação de fornecedores, garantindo a competitividade da indústria automotiva nacional, em um momento em que o Brasil estava no foco dos grandes investimentos mundiais das principais empresas do setor.
Para lograr seus objetivos, o Inovar-Auto trazia uma série de metas e exigências – com foco na melhoria da eficiência energética dos veículos, em investimento em tecnologia e pesquisa e desenvolvimento e nacionalização das etapas produtivas, dentre outras – que seriam compensadas com estímulos/incentivos governamentais. A ideia básica do programa era estimular o investimento para promover um upgrading nas estruturas produtivas do setor e ampliar sua inserção internacional.
Entre 2014 e 2016, instalaram-se e ainda 10 novas fábricas de carro no Brasil, totalizando um investimento de R$ 14 bilhões. Segundo as próprias empresas, todos os investimentos eram estimulados pelo Inovar-Auto e pelo vigor do mercado interno. No entanto, o golpe ilegítimo e a criminalização indevida da política industrial interromperam esse movimento de expansão.
Após o início da crise política e econômica a partir de 2015, o PIB brasileiro passou apresentar uma perda de dinamismo, com taxas negativas em 2015 (-3,55%) e 2016 (-3,28%), com pífio crescimento em 2017 (1,32%), 2018 (1,78%) e 2019 (1,14%). Esse baixo dinamismo do mercado interno afetou profundamente a indústria automobilística, que tinha sua produção voltada, fundamentalmente, para o mercado interno.
Entre 2014, 2015 e 2016, houve taxas negativas de crescimento, respectivamente -15,1%; -22,7%; e -10,5%. Somados, uma queda na produção de autoveículos de - 48,3%, com um número total de autoveículos produzidos caindo de 3.738.448 em 2013, para 2.195.712 em 2016. A ligeira recuperação entre 2017 e 2019 levou a um total de crescimento de 32,5%, mas com a produção ficando em apenas 2.951.446 autoveículos, muito longe do auge do crescimento do setor.
Esse baixo dinamismo da indústria automobilística, em decorrência da crise do mercado interno e da baixa inserção externa da indústria automobilística via exportações, resultou em uma queda do faturamento líquido de US$ 87.294 bilhões em 2013, para US$ 54 bilhões em 2019. O número de empregos gerados também caiu de 135 mil em 2013 para 106 mil em 2019.
Os indicadores e a própria dinâmica da indústria automobilística deixam em evidência que a principal variável para seu dinamismo foi o crescimento do mercado interno, em crise desde 2015.
No governo Temer, a iniciativa Rota 2030 tentou dinamizar o setor, mas não conseguiu que a produção de autoveículos retomasse seu nível de atividade do período anterior, principalmente porque se tratou de um programa pontual de estímulo à inovação, que não veio acompanhado de um processo de recuperação do crescimento econômico, em particular do mercado interno.
Com o governo Bolsonaro, a perda de dinamismo se intensificou e o Brasil perdeu ainda mais força no cenário global, perdendo posições no ranking mundial de produtores globais. Além de o governo não ter a indústria automobilística entre suas prioridades, a perda de renda do consumidor e o enfraquecimento das exportações provocados pela crise argentina tornaram a situação ainda mais dramática.
A Covid-19 agravou a crise da economia brasileira e a atual política econômica não traz perspectivas de retomada do crescimento, a taxa de desocupação no país já chega a 14,4%, além da elevada precarização das condições de trabalho com uma taxa de subutilização de mais de 30% e uma taxa de desalento de 5,7%. Sem perspectiva de retomada do crescimento econômico de forma vigorosa e contínua, é previsível que a indústria automobilística tome a decisão de fechar suas unidades no Brasil.
Além disso, ao longo dos últimos anos, o Brasil perdeu relevância no desenvolvimento de novos carros, que atualmente se concentram na eletromobilidade, direção autônoma e tudo o que envolve novas necessidades de transporte, isto é, a transição dos carros a combustão para os modelos híbridos e elétricos. A despeito de o Brasil ter equipes de engenharia de alto nível, o país não está inserido no novo mapa de desenvolvimento dos automóveis.
Em um setor onde os investimento são extremamente disputados entre as filiais espalhadas pelo mundo, com os países asiáticos se tornando os mercados mais atrativos no mundo, como China e Índia, aliado a uma conjuntura que mistura a crise provocada pela pandemia com a necessidade de gastar mais dinheiro nas tecnologias do carro do futuro, as matrizes tendem a ser mais seletivas e o Brasil parece estar cada vez mais distante de um mercado atrativo, do ponto de vista da sua capacidade de desenvolvimento tecnológico, como também do ponto de vista de atratividade do seu potencial de mercado interno.
Por todos esses motivos, a recuperação da indústria brasileira em geral, e da indústria automobilística em particular, definitivamente não passa por mais reformas liberais, mas sim pela reconstrução de uma política macroeconômica que estimule investimentos e por uma política industrial que amplie a densidade tecnológica e a complexidade da matriz já existente, avançando em direção ao desenvolvimento de um novo paradigma industrial que esteja à altura dos desafios nacionais e internacionais, garantindo uma inserção produtiva, tecnológica e comercial autônoma para o país, do contrário a Ford será apenas mais um dos casos de fechamento de empresas entre muitos outros que podem se abater sobre o país ao longo deste ano.
*Uallace Moreira Lima é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*William Nozaki é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.