Por Chico Alencar*
("Em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão" - dito popular)
Nada de novo sob o sol fluminense, nada é definitivo na trajetória das sociedades humanas.
O Rio, capital da Colônia a partir de 1763, sempre teve uma história de roubalheira oficial, intriga e disputa traiçoeira pelo poder. Lobo comendo lobo, briga de cachorros grandes. Aqui, tudo repercute muito. Mas o Rio é também reflexo do que acontece no Brasil profundo, dos rincões, em ponto menor.
“Corte infame, corrupta e depravada”, escreveu o jornalista Hipolyto José da Costa, em seu Correio Braziliense, impresso em Londres (aqui “encheriam a boca dele de porrada”). Isso depois de a Família Real do Estado Absolutista Português ter se transferido para cá, em 1808.
“Quem rouba pouco é ladrão/ quem rouba muito é barão/(...) Rouba Azevedo no Paço/ Targínio furta no Erário/ e o povo aflito carrega/ pesada cruz ao calvário” - dizia-se no Município Neutro, sede do Império do Brasil. O historiador conservador Pedro Calmon (1902-1985), analisando nossas origens aristocráticas, chegou a dizer que “para ganhar título de nobreza em Portugal eram necessários 500 anos, mas no Brasil bastavam 500 contos”.
Em 1960 deixamos de ser capital da República, mas os vícios da máquina aqui implantada continuaram: o fisiologismo, o toma lá dá cá, as panelinhas que se revezavam no poder, a corrupção, o desprezo pela população. Witzel, eleito com Bolsonaro, continua Pezão, que continuou Cabral, que continuou Rosinha, que continuou Garotinho... Com seus empresários fornecedores de estimação, guardadas as nuances de ocasião. E um “pastor” que apascentava esse “rebanho”, o profissionalíssimo Everaldo, dono do PSC - Partido Social Cristão!!! Everaldo que, por sinal, batizou Bolsonaro nas águas do rio Jordão. A regra é usar o nome de Deus em vão... (Rezemos, oremos e torçamos para que o pastor preso se converta e relate, em nome da verdade que liberta, tudo o que sabe e fez nas sacristias nada diáfanas do poder, ao longo de tanto tempo).
A regra da perpetuação na administração fluminense vem desde Chagas Freitas, pseudo oposição, depois da fusão imposta em 1975: dar para o povo migalhas do banquete palaciano, a fim de que os que se refestelam ali continuem, sem dano. A velhíssima política da bica d´água e do encanamento superfaturado.
Agora Witzel, em desgraça com seus criadores, ataca os Bolsonaro - "minha esposa recebeu pagamentos, só que legais!", alfineta. WW garante que está sendo “massacrado” porque prendeu milicianos (?), em clara alusão às relações suspeitíssimas dos ex-aliados com esses grupos criminosos. E porque deixa a Polícia Civil agir com independência. No sufoco, chega ao ponto de denunciar o “circo dos processos criminais” - do qual ele e Bolsonaro foram espetaculares “trapezistas” (ou “palhaços”) para suas vitórias eleitorais. O ex-juiz mudou bem o discurso, mas não seu reacionarismo autoritário, de repressão, similar ao do antes “parceirão”.
Bolsonaro, sempre leviano, riu do afastamento do ex-amigo. Deve achar que vai facilitar a blindagem de sua família, como descaradamente quer. Artimanhas da casta no poder, no seu afã de se proteger. Nem sempre dá certo. Nessa briga de antigos parceiros todos gritam e ninguém tem razão. Ou todos têm.
No caso do Rio, a única saída para o “imbróglio” atual é devolver a decisão ao poder originário, o povo. Para que ele casse quem teve voto e traiu a confiança nele depositada. Não em decisão judicial - menos ainda monocrática -, mas através do processo constitucional do impeachment, desenvolvido por quem também foi mandatado pelo voto, na Assembleia Legislativa. Para que o povo escolha, soberano e escaldado pelo imenso engano, seus novos governantes.
Vendo esse mar de lama no nosso Rio lindo, que resiste com trechos de água limpa correndo para o grande mar de justiça e defesa da causa pública, lembro de outro historiador pioneiro, Capistrano de Abreu (1853-1927). Para ele, irônico, a Constituição do Brasil devia ter um único artigo: “Todo brasileiro deve ter vergonha na cara”.
*Chico Alencar, ex-parlamentar, é professor de História.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.