O atual sistema interamericano de proteção aos direitos humanos nasceu na esteira de formatação da Organização dos Estados Americanos (OEA), levando adiante perspectiva assumida pelas Nações Unidas de que seria impossível obter-se paz e equilíbrio para humanidade sem valorar-se a dignidade humana em suas múltiplas dimensões. A Carta da OEA de 1948 previu, no art. 107, a criação de uma Comissão Interamericana de Direitos humanos (CIDH), cuja função primordial seria “promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria”.
Criada em 1959, a CIDH foi o primeiro organismo internacional regional de proteção dos direitos humanos, sendo-lhe reconhecida a prerrogativa de estabelecer o próprio regulamento, segundo o disposto no art. 39 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica). O Regulamento da CIDH de 2009 (modificado em 2013), é taxativo no art. 1.1, “a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos que tem como função principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria”. Portanto, vinha sendo assim, com autonomia para decidir sobre si e sobre a política de fomento, fiscalização e monitoramento de direitos humanos empreendida na América pelo sistema que lhe competia, que a CIDH era reconhecida pela OEA, até o último dia 15 de agosto.
Não obstante, naquele dia, o Secretário Geral da OEA, Luis Almagro, comunicou decisão de não dar prosseguimento à recondução, para exercício de um segundo mandato, do Secretário Executivo da CIDH, Paulo Abrão, no posto para o qual havia sido inicialmente escolhido em 2016. A decisão assombra defensoras e defensores de direitos humanos não apenas no continente americano, mas no mundo inteiro, à medida que a recondução do Secretário Executivo para o segundo período havia sido aprovada, em janeiro de 2020, por unanimidade e com inúmeros destaques de louvor, pelos 7 membros Comissionados do colegiado, os quais naturalmente aguardavam respeito e atendimento à autonomia da CIDH para tratar dos temas concernentes à sua estrutura.
Ledo engano. O Secretário Geral da OEA preferiu apunhalar o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos pela frente expondo ao mundo fissura que já se percebia que existia internamente. A OEA de Luis Almagro é a mesma que ignorou o golpe institucional no Brasil, em 2016; a mesma que por seu apoio à guerra econômica criminosa liderada contra a Venezuela pelos Estados Unidos não lhe deu outra saída senão deixar o sistema (procedimento de saída em curso); a mesma que cerrou os olhos para o golpe no Equador, em 2017; que, em novembro do ano passado, elaborou relatório criminoso, eventualmente demonstrado mentiroso, denunciando fraude que não existiu nas eleições bolivianas em que Evo Morales seria reeleito presidente do país em primeiro turno, legitimando uma série de excessos que resultou no Estado pré-ditatorial atual.
A OEA de Luis Almagro é a mesma que não vinha digerindo os informes da CIDH sobre cerceamento de liberdade de expressão no Equador. A mesma que mostrava incômodo com os comunicados sobre as brutais e desmedidas ações das forças armadas chilenas contra os estudantes, no início deste ano; que divergia da insistência da CIDH em demonstrar a cumplicidade crescente do Estado brasileiro com o uso da violência nas práticas de segurança pública e prisional, bem assim como a escalada do autoritarismo contra a imprensa e a negligência na gestão da crise de Covid-19, em especial o descontrole em territórios indígenas.
Não há a menor dúvida de que o não atendimento do Secretário Geral da OEA à decisão da CIDH de escolher seu Secretário Executivo teve natureza política, seguramente sendo orquestrada por articulação antidemocrática de Estados Unidos e seu adulador governo brasileiro, através de sua política exterior lesa-pátria. Talvez, uma parte por revanchismo pelo fato do Secretário Executivo Paulo Abrão, apesar de incontestavelmente credenciado para o cargo, haver sido Secretário Nacional de Justiça, Presidente da Comissão de Anistia e Presidente da Comissão Nacional de Refugiados em governos do PT. Porém, existe um outro lado mais obscuro que não admite sua permanência no cenário por entender que sua atuação significa um calo para aqueles que buscam burlar as obrigações concernentes aos direitos humanos em todo continente. Trata-se do fascismo tentando ampliar suas garras para o conjunto de estruturas institucionais existentes.
Por isso, a menos que desejem entregar de vez aos imperialistas o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos (a CIDH pode ser só a primeira investida), ou mesmo o sistema regional da OEA em sua integralidade, as organizações da sociedade civil em toda América Latina devem se posicionar contra o ataque à CIDH. O Mercosul, que contou com Paulo Abrão na presidência de seu importante Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos, também deve demonstrar insatisfação. Os direitos humanos não são de esquerda, nem de direita, são dos seres humanos indistintamente, devendo a luta por sua concretização tocar a todos. Abaixo o golpe contra a autonomia da CIDH.