Por Maria Isabel Tancredo*
O Tribunal de Justiça de São Paulo iniciou o mês de julho condenando autores de vídeos homofóbicos e recheados de discurso de ódio a pagar R$ 80 mil de danos morais coletivos, em Ação Civil Pública movida pela Defensoria Pública, que deverão ser revertidos para políticas de ações afirmativas que visem promover a igualdade e o combate às diferentes formas de discriminação. A Defensoria havia pedido a remoção dos vídeos do ar, a retratação dos autores e o pagamento de R$ 500 mil a título dano moral coletivo.
Um dos vídeos começa com os dizeres “Olhe, cara, sabe aquelas situações em que você SABE o que quer fazer, mas não tem CORAGEM de fazer?”. Em seguida, são mostradas as seguintes situações: personagem dá um soco na barriga de sua namorada gestante, provocando um aborto; filho que “vomita” fogo e mata sua mãe queimada, após ela confessar o seu ofício de prostituta; pai que, de arma em punho, atira no estômago do filho e em sua cabeça, disparando, ainda, aos risos, diversos outros tiros em seu corpo, fazendo-o sangrar copiosamente, após descobrir-lhe homossexual.
Como assinalado pelo Procurador de Justiça atuante no caso, “O ‘humor’ do vídeo decorre da identificação: somente quem compartilha do desejo de realizar tais atos de violência, ou que os entendam no seu íntimo, como naturais, diante das situações narradas, irá achar graça no material. O vídeo reforça machismo e homofobia e ainda naturaliza atos de violência contra minorias, tratando-os como se integrassem o inconsciente coletivo, como se as violências retratadas constituíssem desejos reprimidos, mas existentes em todos nós, bastando um remedinho para liberá-los”.
O que chamou atenção na decisão da 8ª Câmara de Direito Privado, porém, além do valor baixo concedido a título de indenização diante da gravidade do conteúdo dos vídeos, foi o julgamento improcedente do pedido de retirada do ar do material e dos resultados de pesquisa do Google, ao argumento da inexistência de “ilícito penal a justificar a intervenção estatal”.
Causa bastante estranheza o fundamento levantado, especialmente pelo reconhecimento de se tratar de abuso do direito à livre manifestação, com material farto de agressões físicas e verbais direcionadas a minorias. Ao que parece, estabeleceu-se uma problemática mistura entre o campo criminal e civil-constitucional. Se foi constatado abuso de direito e discurso de ódio, com a subversão da figura do humor para reforçar a violência contra minorais, desnecessária a análise de ocorrência de crime para a retirada de material que não encontra o necessário suporte constitucional para permanecer no ar.
Havendo a insistência, que repelimos, de perigosamente misturar as duas distintíssimas e autônomas áreas jurídicas, importante notar que o Tribunal derrapou ao dizer que não há crime, pois não há ofensa a pessoas determinadas, a aplicar os crimes contra a honra, e que o crime de racismo não leva em consideração questões de gênero ou orientação sexual, já que, independentemente de nosso entendimento sobre o tema, o STF enquadrou homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa de nosso Congresso Nacional.
Afinal, se houve o reconhecimento de que se trata de discurso de ódio, discriminatório, ofensivo e abusivo a ponto de ensejar o pagamento de danos morais coletivos, como permitir que o conteúdo siga à disposição do público? A condenação pecuniária por si só interrompe o recado indigno e abusivo de tão fundamental direito de se expressar? O pagamento de um determinado valor estanca a dor da opressão e violência que sustentam o suposto “humor” do vídeo que segue no ar?
*Maria Isabel Tancredo é advogada do Escritório de Advocacia João Tancredo.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.