Por Sol Massari*
Em uma gravação realizada durante uma pregação em 2016, salva sob o título de A Vara da Disciplina, o pastor Milton Ribeiro ensina as mães e aos pais como educar seus filhos: “Talvez uma porcentagem de crianças muito pequena, de criança precoce, superdotada, é que vai entender o seu argumento. Deve haver rigor, desculpe, severidade. E vou dar um passo a mais, talvez algumas mães até fiquem com raiva de mim: devem sentir dor”. Não são palavras soltas, mas o pensamento real do mais novo ministro da Educação no Brasil.
As palavras de Milton Ribeiro são nada mais que um reflexo grave de uma herança da violência que conhecemos no Brasil desde o século XVI, primeiramente com os padres jesuítas vindos da Europa. Ao contrário dos nativos, conforme aponta Azevedo e Guerra, na obra “Mania de Bater: a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil”, de 2010, em que a prática da educação para com as crianças, sob o risco de castigos físicos, não lhes era comum, os jesuítas acreditavam que a disciplina, a correção e a obediência se davam com a punição e violência, em um ato de “amor”.
Dessa maneira, quando voltamos nosso olhar para aquele período sombrio que cicatrizou nossa história, o que vemos é um tempo de terror entre os pequenos, haja vista que o açoitamento e o castigo eram formas de se arrancar o que se considerava pecados dos pequenos indígenas, conforme nos diz Priore, na sua obra “A história da criança no Brasil”, de 1996.
Além disso, para Foucault, em “Vigiar e Punir: nascimento da prisão”, de 1975, os castigos eram a marca da educação, sobretudo na cultura europeia. Segundo o autor, existia uma máquina a vapor que dava açoites e palmadas para correção de meninos e meninas que apresentavam mau comportamento, a partir do olhar do adulto punitivo. Assim, com o processo de adesão à cultura europeia desde os tempos da colonização no Brasil, a prática dos castigos físicos se tornou muito comum na família e na escola até o fim do século XIX.
Essa prática de Punição Corporal Doméstica (PCD) contra crianças e adolescentes é abominável em tempos atuais, pois não somente está diretamente ligada à violência física e emocional, mas também está dentro das relações de desigualdade, entre quem manda e quem obedece.
Essa “educação”, baseada numa pedagogia despótica familiar, apenas desperta o interesse de uma sociedade que tem como princípio um Estado autoritário, para gerar cidadãos que não tenham consciência crítica. No entanto, a punição física em crianças como forma de educação não pode mais ser normalizada em nossa sociedade, isto é, não podemos mais aceitar que a corporação ideológica do castigo físico, proveniente do patriarcalismo, adultocêntrico e autoritário, continue colocando nossas crianças e adolescentes em situação de subjugamento.
Assim, ao longo dos anos, obtivemos conquistas, advindas de tantas lutas e resistência, contra esse tipo de prática. Em 1959, por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração dos Direitos da Criança e, em 1989, tivemos a Convenção das Unidas também sobre os Direitos das Crianças. Finalmente, em 1990, o Brasil abandonou o Código de Menores e conquistou algo muito mais importante, que deixou de fundamentar a ação repressiva dos aparelhos de atuação do governo: o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Todos esses marcos e seus antecedentes inspiradores tiveram grande importância para que transformações fundamentais nas garantias dos Direitos Humanos fossem instituídas, bem como nas mudanças das práticas, na representação e nas perspectivas sobre um outro olhar na infância no Brasil e no mundo.
A partir disso, em 26 de junho de 2014, foi sancionada a Lei nº 13.010, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 13, bem como inseriu os artigos 18-A, 18-B e 70-A. Daí em diante, se tem tanto a definição de castigo físico como uma “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança ou adolescente”, quanto a garantia de que famílias e/ou responsáveis sejam punidos pela lei. Mesmo assim, em 2019, o Disque 100 atendeu mais de 159 mil registros de denúncias, em que o maior grupo afetado foi o das crianças e adolescentes, com 86.837 denúncias, o que representa 55% do total.
No âmbito da literatura brasileira, José Mauro de Vasconcelos já evidenciava essa realidade em 1968, ao publicar “O Meu Pé de Laranja Lima”. Aqui, o autor retratou com veemência o castigo físico dos pais como ato disciplinador contra crianças, uma delas Zezé, um menino de cinco anos, que fugiu de sua situação através da criação de um mundo próprio e cheio de fantasia, em que um pé de laranja lima era o refúgio dos seus medos, tristezas, desencantos, que na tenra idade já conhecia.
Entretanto, mesmo sabendo das surras que viriam com suas travessuras infantis, ele não deixa de se desfrutar com pequenos prazeres. Assim, Zezé é uma das crianças que representam esse triste universo de 55% das denúncias no Disque 100.
*Solange Massari é mestre em Serviço Social, Psicopedagoga, Assistente Social e ativista em direitos humanos e defesa das mulheres.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum