Por Filippo Pitanga*
Com a febre do final da série “Dark”, na Netflix, muita gente já está órfã de seu passatempo favorito nesta quarentena. E sabemos bem o valor devido à cultura durante este período de confinamento, não apenas como entretenimento, mas como gerador de reflexões e catarses. Mesmo com a sensação de impotência perante a situação mundial e a de nosso país, podemos traçar inúmeros temas pungentes e dolorosos que as artes andam catalisando na telinha de nossa casa, a nos permitir colocar os neurônios a funcionar e semear resistência para o futuro. Portanto, separemos alguns destes temas através de sugestões que podem ser encontradas nas plataformas digitais para debater a nossa situação atual.
Em primeiro lugar, há de se falar sobre governabilidade e o exercício equivocado de figuras totalizantes e autoritárias. E uma das melhores séries no momento sobre o assunto decerto é “The Great”, sobre Catarina, A Grande, Imperatriz da Rússia no século XVIII, interpretada com irreverência por Elle Fanning. Criada por Tony McNamara, o roteirista trouxe toda a sua experiência de dramaturgias irônicas e centradas em fortes personagens femininas da realeza, como em seu roteiro anterior, “A Favorita” de Yorgos Lanthimos (2018), inspirado na Rainha Ana da Inglaterra. Deste filme, McNamara trouxe a mesma licença poética e também o ator Nicholas Hoult, que interpreta o despótico e imaturo Imperador Peter III na série, a quem sua esposa, Catarina, está tramando assassinar. Tudo em nome de defender a Nação da irresponsabilidade de seu governante... – Uma catarse que pode lembrar o atentado com a famigerada facada durante as últimas eleições no Brasil.
Para além de algumas atualizações muito bem-vindas a dialogar com os novos tempos, em termos de representatividade no elenco e na trama, é a atriz Elle Fanning quem verdadeiramente excede as expectativas na pele da Imperatriz Catarina. Abraçando o espírito da picardia, consegue superar a desconfiança até de espectadores que exigissem mais veracidade histórica, numa reconstituição de época mais livre em figurinos e cenários luxuosos, que realçam as cores excêntricas de forma satírica. A série estreou nos EUA pela plataforma HULU (a mesma de “The Handmaid’s Tale”), mas no Brasil está chegando pela Starz Play (que também está trazendo outro sucesso recente, “Normal People”, da BBC, sobre relacionamentos amorosos na contemporaneidade).
Por falar em relacionamentos confinados, talvez uma das maiores surpresas da temporada seja “Breeders”, pelo canal FX e Sky Originals, série criada por Martin Freeman (também das séries “Sherlock” e “Fargo”, ambas na Netflix). Freeman protagoniza a produção ao lado da excelente Daisy Haggard, interpretando jovens pais que talvez ainda não estivessem tão preparados para ter filhos. Independente do finíssimo humor britânico, há situações dramáticas e no limite da moralidade que realmente colocam à prova a responsabilidade adulta na constituição de uma identidade madura em meio à loucura atual. Eles são pessoas completamente normais a quem são interpostas situações extraordinárias, às vezes injustas, noutras mesquinhas ou mesmo impossíveis, sob as quais muitas vezes eles falham miseravelmente – mas ficam felizes em apenas conseguir superar mais um dia (algo que lembra um pouco “Seinfeld” em sua anarquia cáustica).
Sobre a identidade feminina e questões de interseccionalidade nas políticas públicas, há algumas atrizes de Hollywood que andam à frente de algumas das principais produções para a telinha, como Cate Blanchett e a nova “Mrs. America” para o canal FX e Hulu. Conta com grande elenco, como Rose Byrne, Uzo Aduba, Sarah Paulson, Elizabeth Banks e Tracey Ullman, além da própria Blanchett. A trama versa sobre o movimento feminista da década de 70 para ratificar a Emenda Constitucional de Equiparação de Direitos nos EUA, numa luta que não apenas teve como obstáculos homens de extrema direita, como também suas esposas conservadoras e até resquícios neonazistas e da Ku Klux Klan – mais uma vez ressoando no Brasil do presente. E o sucesso foi tanto que a produtora de Blanchett, Dirty Films, assinou contrato para produzir outras séries. Algo similar ao prestígio atual da atriz Reese Witherspoon, que não apenas coproduziu o sucesso “Big Little Lies” para a HBO, como está à frente de “The Morning Show” na Apple TV, com Jennifer Aniston e Steve Carell (denunciando o assédio no ambiente de trabalho), e do novo sucesso “Pequenos Incêndios Por Toda Parte” (“Little Fires Everywhere”) da Hulu e na Amazon Prime no Brasil, ao lado de Kerry Washington (denunciando o racismo estrutural).
E até para debatermos o movimento #blacklivesmatter e #pridemonth, não obstante sucessos disponíveis na Netflix como “Pose” de Ryan Murphy, “Atlanta” de Donald Glover e “Olhos que Condenam” da Ava DuVernay, e a nova comédia “BlackAF” de Kenya Barris (criador da famosa “Black-Ish” na Sony Brasil), conheçam melhor “Insecure” de Issa Rae na HBO. A atriz, cineasta e produtora é uma das melhores showrunners a despontar deste lugar de autoralidade de quem gera o argumento e protagoniza sua própria série, concebendo um universo descolado em episódios enxutos, que giram em torno de sua personagem e suas amigas. Ela possui o enorme diferencial de criar humor a partir de lugares aparentemente desconfortáveis, os quais ela desconstrói sempre numa cadência de emancipação. Sem falar em investir numa dramaturgia de autonomia feminina, reivindicando seu espaço no mundo: que pode ser uma cena em paz na própria casa, ou comendo seu burrito favorito a passear pelas ruas, de bem consigo mesma. Da mesma forma, outra revelação dos novos tempos é Michaela Coel, criadora de séries como a comédia “Chewing Gum” da Netflix e do novíssimo drama “I May Destroy You” da HBO, combatendo relações abusivas (e vale também indicar “Black Earth Rising”, protagonizada por Coel e John Goodman).
Já para debatermos a pandemia mundial e a necessidade de proteção perante a curva ascendente de contaminação com tristes recordes no Brasil perante o mundo, as séries brasileiras mostram que não sobrevivem apenas de “Coisa Mais Linda”, como a novidade “Reality Z”. É uma adaptação do seriado britânico “Dead Set” por Cláudio Torres e João Costa, em coprodução da Netflix com a Conspiração Filmes. Com elenco misto de artistas do cinema contemporâneo, como os ótimos Carla Ribas, João Pedro Zappa, Emilio de Mello e Guilherme Weber, bem como da TV, como Sabrina Sato e Jesus Luz, o projeto poderia ser encarado como uma grande brincadeira com a linguagem de gênero, perante referências de filmes B, apocalípticos e de zumbis... Mas este que vos escreve, por incrível que pareça, é um grande apreciador desse nicho, e acho que a segunda metade da série, que se distancia do original, tem muito a oferecer.
Há sim um tom do ridículo que se assume muitas vezes, não como demérito, mas quase como surreal. Afinal, não estamos vivendo tantos momentos surreais atualmente? Pessoas que às vezes demonstram nem acreditar na pandemia mundial e que se arriscam não apenas a contaminar a si próprios como a terceiros? Como se a vida fosse descartável e parassem de se importar com as perdas diárias? É um choque de realidade. Ainda mais em recortes de opressão na sociedade, pois algumas pessoas podem ter escolha em serem contaminadas por ignorância, mas outras precisam trabalhar para sobreviver, e não possuem o privilégio do home office... E é aí que todos os absurdos de uma série de zumbis se tornam muito próximos da pantomima atual, e apenas a janela televisiva pode nos dar alguma catarse em relação ao que não podemos enfrentar lá fora; ao menos não por enquanto.
*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema