Por Simone Rego*
A epidemia de Covid-19 escancarou a desigualdade social extrema no Brasil, mas não a expôs em toda sua crueldade e para todos os olhares. Os que, como eu, arriscam-se na trilha da Covid e atravessam o que parecia ser o limite territorial de pobreza nas periferias, descobrem contingentes de vulneráveis invisíveis, mesmo aos mais experimentados e sensíveis às tragédias sociais. Eles surgem como fantasmas do limbo, famílias inteiras, quando recebem ecos de que em algum ponto mãos se estendem em sua direção.
Atuo profissionalmente e como militante política na Cidade Tiradentes e moro na Zona Leste paulistana há décadas, mas desconhecia o pior da realidade de seus cerca de 300 mil moradores. A epidemia de Covid me arrastou para distâncias e becos até então fora do meu mapa.
Logo no início da epidemia, em março, organizei uma rede de solidariedade na região, com apoio de professores, jovens dos coletivos de cultura locais e um grupo de amigos arregimentados nas redes digitais. A ideia da rede, como tantas que se formaram país adentro, é arrecadar e distribuir alimentos, máscaras, produtos de higiene para ajudar as famílias mais vulneráveis a se protegerem da Covid e atravessarem a crise com menos insegurança alimentar e alguma dignidade.
Nossa prioridade, entre prioridades, foram as favelas, onde as condições vis potencializam o contágio e as mortes pelo novo coronavirus. Não por acaso, Manaus, capital do Amazonas, foi a cidade mais afetada pela covid no Brasil: 53,4% das moradias da cidade, de mais de 2,1 milhões de habitantes, estão em favelas, a maior proporção entre todas as capitais do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No Brasil, que chora hoje mais de 50 mil mortes por covid, as moradias em favelas explodiram entre 2010 e 2019, de acordo com o órgão: de 3,2 milhões de habitações em 6,3 mil núcleos, passaram a 5,1 milhões em 13,2 mil ocupações. É possível que vivam hoje em favelas aproximadamente 25 milhões de brasileiros, em torno de 12% da população.
Mas o que tenho descoberto em Cidade Tiradentes está além dos números e das imagens que frequentemente o brasileiro tem das favelas, romantizadas no cancioneiro popular e nas novelas do horário nobre, ou simplesmente criminalizadas no noticiário policial ou, ainda, vistas com indiferença mesmo diante dos frequentes assassinatos de jovens e crianças pretas em tiroteios jamais investigados e punidos.
O que tenho visto difere muito, em outros aspectos ainda, do cenário das grandes ocupações, como Paraisólopis e Heliópolis, em São Paulo, ou o Complexo da Maré e a Rocinha, no Rio de Janeiro. Essas favelas têm algum nível de organização social e visibilidade na mídia, certa forma de resistência, ainda que tênue, diante da magnitude da tragédia de morar e viver numa espécie de cidade clandestina, ainda mais durante uma pandemia.
Em Cidade Tiradentes, onde mesmo as habitações regulares são em geral precárias, típicas das periferias, as favelas se expandiram muito nos últimos anos. Se não há dados para quantificar tal expansão, sabemos que a área construída regularmente no distrito explodiu em 25 anos (até 2019): aumentou 1617%, para uma média, no mesmo período, de 60% em toda a cidade de São Paulo [1]. O número de moradias regulares, no mesmo período (1994 a 2019), cresceu 18 vezes, mas a oferta de serviços públicos nem de longe acompanhou a explosão demográfica oficial, muito menos a real: o número de escolas aumentou sete vezes e o de hospitais seguiu padrão semelhante [1].
Nesse caótico cenário, e com inestimável ajuda do presidente da República, com sua não-política para a epidemia e seu estímulo criminoso a sua propagação, a Covid, que se alastra de forma silenciosa, é só um problema a mais. Felizmente, pelo menos, Cidade Tiradentes não está entre os dez bairros mais afetados neste momento, de acordo com as últimas estatísticas divulgadas pela prefeitura (21 de junho). Eram 118 os mortos pela doença até 26 de maio no distrito.
Voltando ao nosso foco: nossa rede de solidariedade começou pela ocupação Vila Yolanda II e foi se estendendo. Hoje, atua em quatro favelas, com total de cerca de cinco mil “moradias” e mais de sete mil habitantes: Jardim Maravilha, Jardim Vila Verde e Souza Ramos, além de Vila Yolanda II. São núcleos menores, comparativamente, e estabelecidos mais recentemente, onde não existe nenhuma forma de organização social ou cultural nem a mínima visibilidade. É como se esses brasileiros não existissem nem para o Estado nem para a sociedade.
Nesse contexto, ainda temos de priorizar o atendimento: detectamos as famílias que não estão recebendo auxílio emergencial do governo federal, idosos e mães solo. As informações têm sido utilizadas inclusive para encaminhamento de casos de extrema vulnerabilidade aos serviços públicos. Além de oferecer cestas, identificamos pessoas que já tiveram contato com infectados ou com algum sintoma de Covid e, em caso positivo, as encaminhamos à unidade de saúde mais próxima.
O esforço tem sido enorme, mas minúsculo diante de carências tão profundas e, especialmente, da ausência do Estado. Quando pensamos que um padrão de atenção foi minimamente estabelecido, somos atropelados pelo até então invisível entre invisíveis ou por toda sorte de acontecimentos trágicos.
Semanas atrás, uma das quatro favelas, com 150 barracos feitos de tapumes, no chão de terra batida, sem água encanada nem esgoto, sofreu um incêndio que deixou 200 famílias desabrigadas e sem assistência nenhuma da prefeitura. Mal conseguimos doações de tábuas e começávamos a reerguer os casebres, uma chuva forte fez transbordar o córrego imundo ao longo do qual eles se distribuem, inundando o que sobrara do incêndio.
Já no núcleo Vila Verde, “descobrimos” cerca de 150 famílias bolivianas, chefiadas por trabalhadores da área de confecções atualmente desempregados. A maioria dos imigrantes está em situação irregular no país, sem documentos, e por isso não consegue acesso ao auxílio emergencial. Além de oferecer a eles cestas básicas, acionamos o consulado da Bolívia e os estamos assessorando na obtenção de documentos.
No dia 16 de junho, já no pico da epidemia, uma reintegração de posse solicitada pela prefeitura e duas famílias proprietárias de parte daquela área, desalojou 900 famílias no bairro Roseira II, entre Cidade Tiradentes e Guaianases. Parte das delas havia sido ludibriada por criminosos que teriam lhes “vendido” os terrenos. Governo do Estado e prefeitura se fizeram representar por meio da polícia militar e das máquinas que demoliram os casebres. Ao longo desses três meses de atuação da rede de solidariedade, aliás, não deparamos com um só assistente social ou agente de saúde em nenhuma das quatro favelas, nem durante essa ação.
Para completar, ainda precisamos lidar com a criminalidade, o tráfico, a violência, inclusive e principalmente a policial, que desde o começo deste ano já ceifou por ali a vida de três jovens, sem que os crimes fossem esclarecidos.
Diante de tanto horror, e de nossa própria precariedade, alguém pode nos tomar por idealistas, lutadores de causas perdidas. Mas a realidade é outra. A rede de solidariedade tem feito enorme diferença naquelas comunidades, e não apenas pelo auxílio material, importante, mesmo que insuficiente, que tem provido. A solidariedade tem, principalmente, feito despertar entre os moradores potenciais lideranças e um novo ânimo para a luta e a auto-organização, em especial entre as mulheres. Nesse sentido, a fala da dona de casa Vanusa Fonseca Sousa, de 45 anos, moradora da favela Sousa Ramos, é emblemática: “Estou vivendo um momento de transformação. Sabe a lagarta se transformando em borboleta? Um momento meu, de resgate da mulher de luta que eu sou”.
Por isso e por tudo o que estamos vivenciando a leste do leste de São Paulo, reafirmo: o único caminho das esquerdas rumo ao reencontro com suas bases sociais é aquele que leva aos mais pobres. E este é, enfim, o nosso objetivo, um objetivo carregado de sentido político: estimular e fortalecer o espírito de comunidade para a conquista coletiva de democracia de fato, justiça, dignidade e autonomia.
(1) Reportagem de Artur Rodrigues, ”Pelos lados e para o alto, SP cresce 60% em área construída em 25 anos”, baseada nos dados do IPTU da cidade de São Paulo (Folha de S. Paulo, 3 de setembro de 2019).
*Simone Rego, 47 anos, é professora de ensino fundamental na rede pública de São Paulo. Mora e trabalha nas extremidades da zona Leste paulistana, uma das regiões mais carentes e a mais populosa de São Paulo. É militante política de esquerda desde a adolescência, nos anos 1980, e pré-candidata ao legislativo municipal este ano pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.