Não é junho de 2013. É junho de 2020, por Alexandre Santos de Moraes

"As diferenças são gritantes tanto porque os fatos históricos são irrepetíveis como porque estamos em um cenário político fortemente influenciado pela instabilidade que esses mesmos atos ajudaram a deflagrar"

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil
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Por Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes*

Apesar da pandemia, hordas bolsonaristas permanecem nas ruas. Para eles, defender o fascismo é mais importante do que combater o coronavírus. Estavam lá, confortáveis, em Brasília e outras cidades do país, desfilando sua estética autoritária para bajular seu líder. No último fim de semana houve resposta que pode servir de estopim para outras mais contundentes. Grupos antifascistas, sobretudo associados a torcidas organizadas, concluíram que a ameaça à democracia é mais grave que o coronavírus. Talvez estimulados pela proximidade do mês que ora começa, não faltou quem associasse esses atos às Jornadas de Junho de 2013.

O comparativismo histórico é demasiado importante para ser vulgarizado. É bem verdade que estamos permanentemente envolvidos com a comparação: comparamos o passado com outros passados, comparamos os passados com nosso presente. Comparamos as experiências humanas. Comparar é um exercício não apenas persistente, mas necessário. O grande problema é tomar a comparação como uma busca psicótica por semelhanças, o que leva muitas vezes, sobretudo no calor dos acontecimentos, a ignorar as diferenças.

Estamos em junho de 2020, e não em junho de 2013. A fetichização daqueles atos permanece no imaginário de muitas pessoas. De forma muitas vezes honesta, mas com boa dose de inocência, acalenta-se a esperança de que é possível disputar a memória dos acontecimentos para torná-los apetecíveis. No entanto, estamos diante de fenômenos muito diferentes. Não é a mesma coisa e nem poderia ser. As diferenças são gritantes tanto porque os fatos históricos são irrepetíveis como porque estamos em um cenário político fortemente influenciado pela instabilidade que esses mesmos atos ajudaram a deflagrar.

Não custa lembrar que as manifestações de Junho de 2013 tiveram várias fases em tempo curtíssimo. Os primeiros atos foram protagonizados por uma fração da esquerda que se opunha aos governos petistas. O ensejo foi o aumento de R$ 0,20 nos preços das passagens de transporte público e a luta era pelo passe livre. No início, cerca de 20 mil pessoas protestavam na capital paulista. Em poucos dias, mais de um milhão ocupavam as ruas em cerca de 75 cidades do Brasil. Alguns confrontos ocorreram entre os manifestantes, mas eram fatos isolados. A maioria parecia concordar com a discordância. Muitos, é verdade, abandonaram as ruas quando as bandeiras dos partidos passaram a ser hostilizadas, e não tardou para que a luta contra o aumento das passagens fosse substituída pelo lema “Não é só por vinte centavos” e muitos, quando questionados acerca dos motivos, diziam estar lutando “contra tudo que está aí”.

A comparação com os atos do último domingo é apressada porque nem de longe se aproximou do volume e do impacto das ruas em 2013. Temos apenas um vislumbre do que pode acontecer. É possível que os atos cresçam, mas em cenário de pandemia é improvável que tenhamos tantas pessoas fora de casa. Além disso, enquanto Junho de 2013 teve um caráter agregativo, já que o movimento cresceu apesar das diferenças de pauta, caso haja um Junho de 2020, ele possivelmente terá caráter opositivo, pois as manifestações se dão em função das diferenças que opõem fascistas e antifascistas. Do ponto de vista externo, os movimentos que ocorreram há 7 anos foram fortemente influenciados por ações urbanas de indignados, como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street. Na última semana, a influência externa se deu pela luta antirracista que cresceu nos EUA após a polícia assassinar George Floyd por asfixia. São, portanto, bem diferentes.

Apesar de algumas crises e diversas críticas possíveis, os indicadores econômicos de 2013 eram muito melhores que os atuais. O Brasil encerrou aquele ano com a menor taxa de desemprego desde 2002. A inflação estava controlada, o PIB havia crescido 2,3% e os programas sociais, sobretudo de transferência condicionada de renda, reduziram a miséria de forma inédita e permitiram que o país saísse do mapa da fome. Em 2019, o PIB cresceu apenas 1,1%, o desemprego aumentou exponencialmente, a informalidade atinge quase metade dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, os programas sociais foram fortemente atingidos e as projeções para 2020 são desanimadoras, já que associam um projeto neoliberal fracassado a uma pandemia avassaladora. Em 2013, as pessoas queriam mais democracia. Em 2020, as pessoas querem democracia.

E esse último ponto é indispensável a qualquer comparação. O Brasil de junho de 2013 tinha um governo eleito democraticamente, sensível às vozes das ruas, comprometido com o Estado democrático, com a ampliação de direitos e com o combate à fome. A presidenta era Dilma Vana Rousseff, primeira mulher a governar o Brasil e que foi duramente torturada na juventude por lutar contra a ditadura. Em 2020, o presidente é Jair Messias Bolsonaro, que passou a vida defendendo os ditadores que Dilma combatia. Ele foi eleito com base em campanhas mentirosas e difamatórias em ambiente de esvaziamento da política. É sensível apenas às vozes de seus apoiadores fanáticos, flerta com golpe o tempo inteiro, adula líderes autoritários, ignora a fome, a saúde pública e priva cada vez mais o povo de direitos.

Vivemos muita coisa entre junho de 2013 e junho de 2020. O país, tomado pela sanha golpista, se tornou apenas a sombra do que já foi. Não basta lutar por saúde, educação ou segurança pública. A luta, hoje, é para que tenhamos a democracia necessária para lutar por aquilo que quisermos. Em 2020, nas ruas ou nas redes sociais, lutamos pelo primeiro de todos os direitos, que é o direito à luta por direitos. A comparação entre a memória de 2013 e o vislumbre de 2020 é suficientemente poderosa para mostrar que são eventos pouquíssimos comparáveis entre si; no entanto, é útil para defender que o fetiche pelas antigas Jornadas precisa ceder lugar a um movimento que, longe de negar a política, busque restabelecê-la em termos populares, inclusivos, combativos e democráticos, como convém na luta por um Brasil capaz de expurgar o fascismo de uma vez por todas.

*Alexandre Santos de Moraes é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense

*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.