Por Henrique Rodrigues*
Não foi fácil chegar até aqui. Num esforço hercúleo, Bolsonaro realmente conseguiu transformar o Brasil em apenas um ano e meio. Somos um hospício que diverte (e choca) o mundo, algo parecido com aqueles circos de aberrações do início do século passado.
Como explicar a alguém que o presidente da República, homem que é chefe de Estado de um país importante, publica em seu perfil oficial um vídeo de carnaval em que um folião acaricia o próprio ânus e leva um jato de urina na cara, em cima de um ponto de táxi? Dá para contar a desconhecidos, no exterior, que você vem de uma nação cujo líder máximo falou que uma repórter queria "dar o furo dela para o negão" que era sua fonte?
Senhores, o Brasil virou um caudaloso rio de chorume, onde a forte correnteza e o volumoso turbilhão arrastaram nossas percepções. Naturalizamos, quando não ignoramos, o absurdo distópico em que estamos vivendo. Acostumados com o papel de atores coadjuvantes, nossa atuação na vida política nacional, que sempre foi relegada em segundo plano, hoje inexiste. Apenas assistimos a essa ópera bufa, ao ‘dramma giocoso’ manicomial, corados pelo que nos restou de vergonha na cara. Em alguns, claro.
Já teve de tudo nesse pesadelo psicodélico no qual habitamos. Presidente vestido como burro de cigano na entronização do imperador japonês, chanceler dizendo que o Nazismo era de esquerda, ministra vendo Jesus Cristo trepado numa goiabeira e propondo uma campanha de doação de calcinhas para meninas da Ilha do Marajó, já que, segundo ela, a sexualidade aflorada e os casos de abuso recorrentes têm relação com a falta da peça íntima.
É difícil descrever, mas o cotidiano do Brasil tornou-se um blend de Os Simpsons, com TV Pirata, Monty Python e obras de Salvador Dalí.
É isso. O governo Bolsonaro é como uma tela de Dalí. Da romã explode um peixe, que de sua arcada sai um tigre, de cuja boca sai uma espingarda, que de seu cano sai o Weintraub gritando "imprecionante", "paralização" e "Ab is out!", com o céu azul de Brasília ao fundo e uma milícia fazendo cosplay de Ku Klux Klan com tochas nas mãos.
Por falar em "Ab is out!", vocês lembram desse episódio? Abraham Weintraub anuncia o desbloqueio de verbas para universidades e então saca uns óculos de papelão, que imitam os de um meme, põe na cara, joga o microfone ligado sobre a mesa, provocando um estrondo, e grita a ridícula frase em inglês, em meio a uma cerimônia oficial do MEC.
Só para salientar, o sujeito é o ministro da Educação.
A escatologia sem limites de Weintraub chegou a um ponto tão intragável que setores dos poderes da República e do próprio séquito bolsonarista exigiram sua saída. O presidente agora corre atrás de um cargo de salário gordo e vida mansa no exterior para brindar o êxito de seu desvairado mais notório. Brindar e blindar. O STF está louquinho para colocá-lo atrás das grades.
No meio do terremoto de loucuras, às vezes viajo nas leituras que fiz pela vida, criando esperança com umas e desespero com outras, ou ainda tudo isso junto. É o caso de uma abordagem de Gilberto Freyre sobre a chegada da modernidade. Eu acho fantástica, muito embora os meios progressistas tenham certa relutância em relação a esse humanista notoriamente conservador e de teses controversas na academia. Freyre já frisava, há mais de 60 anos, que a chegada da modernidade não se daria de maneira uniforme pelo mundo e tampouco deveria ser espelhada na definição que essa palavra tem no Ocidente, sobretudo na Europa. Para ele, o Brasil, por exemplo, teria um processo diferente, por conta de nossa tradição ibérica e das influências africanas, fundamentais em nossa constituição como sociedade (notadamente desigual).
Eu concordo plenamente com isso, mas jamais imaginei que um dos elementos dessa modernidade chegaria na escolha “democrática” de um energúmeno tosco, que prega amor apoiando a tortura, promete paz sedento por guerra, propõe educação despejando ignorância e que prevê um futuro lindo negando a ciência e alimentando a fossa obscura do fanatismo religioso.
Parece que vai tudo bem, não é mesmo?
Na Cultura vamos igualmente de vento em popa. O primeiro a ocupar o posto colocou uma roupa estranha, ensebou o cabelo com gel e plagiou um discurso do chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, num vídeo institucional da pasta. A segunda foi à CNN e encenou a Viúva Porcina, berrando "morre gente todo dia", quando perguntada sobre os mortos pela Ditadura Militar, dançando, toda faceira. Já o terceiro é um ex-galã velha guarda da Malhação, daqueles que só quem chegou aos 40 lembra, mesmo sem lembrar o nome.
O oceano psiquiátrico é tão grande que acabamos esquecendo até de fatos mais recentes. Ontem mesmo, a comitiva brasileira na ONU foi a única do planeta a não condenar o racismo numa reunião do Conselho de Direitos Humanos da organização, sob a alegação de que esse é um problema genérico e menor. Segundo nossa representação nas Nações Unidas, o mais importante agora é defender a polícia.
Sim. Você não leu errado.
Na maior crise desencadeada por um ato de racismo das últimas décadas, o Brasil posicionou-se favoravelmente aos policiais que mataram George Floyd asfixiado. Deixaram claro o motivo: a polícia é mais importante que tudo.
Não tem como não desconfiar de que essa fixação por polícia, fardas e congêneres pode ser uma tara.
É doença. Ou libido.
E a ala militar, hein? É… O governo Bolsonaro tem uma ala militar, seja lá o que isso signifique. Em síntese, é como se fosse um clube da terceira idade que se reúne semanalmente para jogar boccia e traçar os próximos passos da caçada aos guerrilheiros comunistas financiados pela União Soviética. Um club privé do fraldão, onde sobra macheza e remédio tarja preta, mas falta inteligência e o mínimo de lucidez.
Como os caros leitores veem, estamos muito bem e foi com esse time de guerreiros que chegamos à apoteose da insanidade, ao Olimpo da demência coletiva.
A Educação com um apedeuta, a Cultura é de um ex-galã da Malhação, o Meio Ambiente nas mãos de um entusiasta do desmatamento e os Direitos Humanos sob comando de uma fanática zureta, enquanto os apoiadores parecem saídos do set do 'Hermes e Renato'. Eis o Brasil de Jair Bolsonaro.
Claro que muita coisa vai ficar de fora dessa radiografia da maluquice. Isso porque nem falamos dos últimos episódios envolvendo a mortífera pandemia atual.
O cara trocou um ministro que se recusava a fazer-se de doido. No lugar dele pôs um que tinha cara de bobo, embora realmente fosse só a cara. E por último nomeou um general que colocou o semiárido nordestino no hemisfério norte e cobriu de neve a estátua do Padre Cícero, no Ceará.
Também não falamos aqui da senhora que, confusa mentalmente, disse a Bolsonaro que havia descoberto a cura para a Covid-19 numa poção mágica composta por alho e enxofre. Entusiasmado, na frente das câmeras, o presidente pediu a um assessor que arranjasse uma audiência para a feiticeira com o ministro da Saúde.
E isso não é tudo. Faltou espaço ainda, da mesma maneira, para contar que o Ministério das Comunicações foi recriado pelo Messias, para ser dado a Silvio Santos, por meio da nomeação de seu genro como ministro. Imaginem a felicidade do Homem do Baú ao saber que agora a bufunfa é liberada pelo marido da filha.
Num ritmo alucinante, a máquina de moer o equilíbrio psicológico instalada por Bolsonaro no Planalto vai parindo os absurdos mais grotescos diariamente, impossibilitando o registro e a catalogação de tudo. Não há espaço, memória e estômago que permitam reunir todo esse esgoto.
E de pensar que, até o próximo fim de semana, uma outra leva de barbaridades inacreditáveis ainda surgirá.
Até porque, a única certeza que temos nisso tudo é de que a usina de loucuras do espantalho mórbido que nos governa não para.
Nem dá trégua.
*Henrique Rodrigues é jornalista e professor de Literatura Brasileira.
*Esse artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.