Por Filippo Pitanga*
Quando pergunto qual é seu cineasta favorito, independente do nome da pessoa, por acaso a primeira imagem que lhe vem à cabeça seria a de um homem branco? Por que será isso? Por que nossas narrativas são tão plurais e, ainda assim, a visão da pessoa que filma essas histórias ainda é predominantemente estreita? Não haveria histórias que são tão diversas que teriam o direito de ser contadas por outras identidades? Uma relação que atravessa não só o corpo de quem é filmado, como o de quem filma
Histórias como os recentes casos que estão movendo o mundo em revoluções sociais em face do racismo e da violência policial, podendo se referenciar George Floyd e Breonna Taylor nos EUA, e João Pedro Mattos e Miguel Otávio Santana da Silva no Brasil, só para citar alguns.
Na verdade, corrigindo uma interpretação imprecisa acima, as pessoas deveriam ser livres para filmar o que quisessem, com certeza. O problema é justamente esta “liberdade” que não costuma ser garantida para todos, e é distribuída de forma desigual em privilégios detidos por um padrão hegemônico.
Se não tivermos ainda mais representatividades plurais, jamais poderemos combater o racismo em sua própria estrutura. E dois filmes em especial se comunicam com tudo o que está acontecendo agora: a ficção em curta-metragem “Sem Asas” de Renata Martins (2019) e o documentário em longa-metragem “O Caso do Homem Errado” de Camila de Moraes (2017).
Quem sabe se mais pessoas assistissem a estas obras, que deveriam ser obrigatórias em escolas e universidades, a responsabilidade sobre estas mesmas injustiças poderia ser conscientizada desde a fase de formação da vida.
Ficção e realidade negra no Brasil
“Sem Asas”, de Renata Martins, é um curta de ficção que aborda a violência policial contra a juventude negra, ameaçando mais uma família e abordando o realismo fantástico para tentar combater o resultado fatal que ainda é predominante. O destino lúdico do protagonista é um grito de liberdade contra os grilhões que tiram o direito das identidades negras sobre seus próprios corpos (como se demonstra nas belíssimas cenas em que os familiares se banham no filme, na pele de Grace Passô e Kaik Pereira, ao deixar as personagens se reapropriarem e se reocuparem de afetos).
Já “O Caso do Homem Errado” é uma história familiar para sua diretora Camila de Moraes, pois fala sobre o caso real de Julio César, seu tio, que foi brutalmente assassinado pela Polícia Militar em 1987 no Rio Grande do Sul ao ser confundido com outra pessoa.
Não à toa, é muito bem-vinda a parte da fotografia do filme em P&B para fazer uma crônica que se autodeclara racializada, pois, apesar de nada poder compensar esta perda, ao menos o respeito a esta memória pode contribuir para evitar a morte de tantos outros como Julio César. Isso porque um dos maiores problemas até hoje é negarem aos familiares o direito de velar seus mortos com justiça e isso estigmatiza famílias para o resto de suas vidas, principalmente a população negra.
Quem recentemente também evocou o direito de velar seus mortos através do mito clássico de Antígona, personagem da tragédia grega, foi a escritora e teórica portuguesa Grada Kilomba, cujo foco de pesquisa é o trauma provocado pelo racismo numa visão pós-colonialista.
Como dialogado na estética atual das lives, Grada conversou na rede social da Pinacoteca de SP sobre sua curadoria na Goodman Gallery para a exposição online “Heroínas, Pássaros e monstros”. E, como ela narra no vídeo de introdução desta visita online, a história da humanidade foi contada sem vários dos personagens que fazem parte de sua narrativa, e que ainda assombram a história presente, porque precisamos respeitar nossos mortos.
Mas, Grada completa sua fala ao abordar a questão do apagamento, e que o ser humano pode ser monstruoso, e pode fazer políticas monstruosas, que excluem estes corpos, esta ancestralidade. E por isso precisamos de hibridismos para que esses corpos ressurjam, como com asas de pássaros e corpo de leão, para sobreviver e contar a sua história: “Uma de nossas tarefas é decolonizar as artes, e nos reinventar e à nossa linguagem”, explica a escritora.
Muito pertinente falar sobre hibridismos e asas em corpo de leão, pois no filme “Sem Asas” de Renata Martins, apenas com a autofabulação da arte é que podemos transcender a injustiça monstruosa e recriar conceitos, para que esses corpos possam existir com todos os direitos que lhes deveriam ser garantidos.
Não à toa, ao invés de se distanciar devido à linguagem, o filme de Renata consegue, na verdade, se reaproximar da catarse de cura realizada pelo documentário “O Caso do Homem Errado” de Camila de Moraes. Este também a recontar histórias de injustiça que não foram contadas como se deveria na época, e ora fortalecida pela memória coletiva de especialistas e seus próprios familiares, como o depoimento emocionado de seu pai, Paulo Ricardo de Moraes.
"Não conseguir respirar"
Voltando a mergulhar na estética das lives recentes, Camila de Moraes participou de um debate online sobre seu filme pela APTC (Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do RS), com participações como da pesquisadora Edileuza Penha de Souza que lembrou o registro histórico de que Camila foi a segunda mulher negra na história do cinema brasileiro, com direção solo, a conseguir lançar um longa-metragem no circuito comercial após um hiato assombroso de 33 anos (vale citar que a primeira foi Adélia Sampaio, com “Amor Maldito”, de 1984).
Como a própria cineasta declara: “A cada 23 minutos tem uma pessoa negra sendo morta. Essa é a questão de não conseguir respirar. (...) Esse sentimento de não conseguir respirar não pode ser só nosso. A gente precisa conseguir respirar e poder falar sem essa dor que nos invade a todo instante. Todo dia a gente acorda com essa dor, e não é de hoje. Não precisa sair do país. Olha para o Brasil! Esse filme foi produzido porque, há mais de 30 anos, Julio César foi executado pelo Estado do Rio Grande do Sul. A gente precisa mudar essa realidade. E no audiovisual a gente precisa debater sobre isso”.
Em outro momento, a diretora complementa: “É o racismo. – precisamos saber – É questão de racismo estrutural. (...) Não pode ficar nessa lógica mais. Tem de chegar o momento de ser igual, pois se não for muito melhor, não vão mostrar nossos filmes... Vão ter profissionais negros fazendo audiovisual e com outros olhares e outras vozes sim. Nada de fazer sobre nós sem a nossa presença”.
E podemos concluir esta catarse conjugando as palavras de Camila com as de Renata Martins, no seu twitter (ecoando seu debate no SPCine), sobre a representatividade da mulher negra e o movimento #VidasNegrasImportam no Globo Repórter da sexta-feira do dia 05/06/2020: “Esse #GloboReporter especial só comprova o que eu já sabia: Mulheres negras estão fissurando as estruturas; seguras, competentes, lindas, conscientes e sem medo de falar o que tem que ser dito. Quero o projeto do programa delas na minha mesa amanhã cedo. Obrigada.”
*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema